quarta-feira, dezembro 31, 2014

bagagem de mão











de uns tempos pra cá volta e meia vejo alguém compartilhando no Facebook um mapa de viagem personalizado, feito com esses aplicativos que colorem os países que já se visitou. Coisa que eu  confesso que já tentei fazer com alfinetes, há mais de dez anos. Mas que hoje me parece ter perdido o sentido. Um pouco porque parece arrogante. Um pouco pela incomodação com uma visão meio consumista do mundo enquanto álbum de figurinhas a ser completado. Mas principalmente por uma discordância fundamental que fui criando com o conceito de conhecer algum lugar.
meu mapa disse que eu oficialmente visitei um terço dos países do mundo, o que parece bastante. Ainda assim, essa promiscuidade só me faz cada vez menos capaz de dizer que conheço qualquer um deles. No máximo existi por uns tempos em cada um, em cruzamentos acidentais entre o meu tempo e o espaço do mundo. Mas se conheci algo de verdade no caminho, quase sempre foi a mim mesmo. E mesmo isso satura lá pelas tantas. Sem querer negar que existam exceções, todos nós temos um repertório limitado do que conseguimos ser. Dá pra oscilar entre duas ou três ou meia dúzia de versões, e alguém que viveu em dois lugares distintos geralmente consegue perceber que assume uma identidade em cada um deles. Mas duvido muito que alguém que tenha estado em sessenta e sete países realmente tenha descoberto sessenta e sete versões de si.
e se viajar hoje em dia ainda me serve pra algo além do simples prazer de existir aqui e ali, talvez seja pra descobrir não mais o que eu consigo mudar em mim, mas o que eu não consigo. Minha menor bagagem de mão possível, aquilo de que eu não consigo me livrar por mais que fuja. Porque num tempo em que eu já tenho três escovas de dente (uma no Rio de Janeiro, uma em Porto Alegre, e uma que já fica na mala), essa bagagem de mão interna é o que eu ainda tenho pra me contrapor à viagem inexorável do mundo rumo à entropia. E depois de um longo tempo empacado em uma tentativa fútil de achar o caminho de casa, perdido numa metáfora da Odisseia, dois mil e quatorze foi mais do que nunca a Ilíada de sempre. Mas serviu pra me convencer que, se o mundo lá fora é todo Troia, a Ítaca que me sobra é esse pouco que eu carrego comigo.
façam os mapas que quiserem, mas o único alfinete que eu tenho é aquele que está cravado em mim.