quando
fiquei sabendo que meu avô tinha morrido eu saí às pressas da casa de um amigo
no Bom Fim. A clínica onde ele passara o último ano de vida, ao longo do qual
já vinha sumindo aos poucos, ficava uns dez quarteirões ladeira acima, perto da
casa dos meus pais. Mas quando saí pra rua achei que tinha lágrimas demais no
rosto pra conseguir pegar um táxi sem ter que dar explicações ao motorista. E
preferindo estar sozinho, por uns instantes que fosse, resolvi subir a Ramiro
Barcelos a pé.
esse texto é sobre o movimento dos corpos. Mas também é sobre perdas.
Assim como um conto que eu havia escrito quatro anos antes, sobre uma tribo na
Amazônia que não conhecia a palavra “ir”, e descrevia todos os movimentos como
trajetórias circulares que voltavam a um mesmo ponto. Foi um presente de
aniversário pra minha ex-mulher, que tinha ido embora pouco mais de um ano
antes. Era como eu via o mundo e as pessoas: um conjunto de percursos
indissociáveis, que inevitavelmente se encontrariam de volta. Mesmo que
levassem mais do que uma vida para fazê-lo.
nessa época eu tinha trinta e dois anos e quatro avós vivos.
nove meses depois disso, minha ex-mulher engravidou de outra pessoa. Foi
a concretização do que até então era a pior perda da minha vida. Lembro de ter
sentido como se alguém tivesse morrido – o que de certa forma era verdade,
exceto que quem morria era uma versão de mim. Como nunca tinha acontecido na
minha vida, praticamente não dormi naquela noite. E às sete da manhã, já sem
saber o que fazer, eu levantei da cama e saí pra correr.
corri os cinco ou seis quilômetros da casa dos meus pais até a beira do rio
Guaíba. Sem nenhum motivo exceto o de fazer algo, qualquer coisa que fosse, pra
responder a algo que não tinha resposta possível. Na ausência de palavras que
não doessem, me restava o movimento do corpo como forma de cortar à força um
fluxo interno que corria atrás da própria cauda.
pra muita gente ao redor meu sofrimento parecia exagerado – faziam quase dois
anos que eu tinha me separado, afinal. Mas minha resposta a quem estranhasse
sempre passava pelo meus quatro avós vivos. Pelo privilégio estatisticamente
improvável de ter chegado à idade adulta quase sem perdas. E de nunca ter
precisado de verdade da palavra “ir”.
hoje eu não posso mais reclamar esse privilégio. E isso me dá uma estranha autoridade
pra escrever em primeira pessoa, sem precisar recorrer a tribos indígenas
inexistentes.
mas voltando ao dia em que meu avô morreu eu subia a Ramiro Barcelos a passo
rápido, pra tentar chegar na clínica. E em algum momento, ainda que eu estivesse
coberto de lágrimas, eu me dei conta que caminhar me fazia bem. Que se pudesse
optar, eu escolheria que aquela ladeira se estendesse pra sempre. Por que estar
caminhando era, de alguma forma, uma resposta. E isso me remeteu àquela manhã
de mais de três anos antes. Em que sem vocabulário pra aceitar o que se
passava, eu tinha desistido das palavras e encarado o mundo com as armas do
inimigo.
porque se a vida vai em frente, sem lógica ou sentido, talvez a única resposta
possível seja aceitar as regras e fazer o mesmo. Deixar as palavras pra trás e
passar a ser corpo e cansaço, câimbra e dor no joelho. Abandonando a
imortalidade das ideias pra assumir justamente o que nos faz frágil, esse
pedaço de carne que caminha sem nexo em direção ao cadafalso. E tentar assim
enfrentar o que não cabe no vocabulário.
no dia que precedeu a morte do meu avô, eu fui padrinho de casamento do meu
irmão. Falando aos noivos, eu pedi que eles não perdessem o espanto e o
deslumbre com aquela transição, com o mistério da vida deixando de ser uma
coisa para passar a ser outra. Ao dizer isso com a voz embargada eu sabia que
falava também sobre o meu próprio casamento, sobre o fato da minha ex-mulher
estar grávida pela segunda vez. E sem saber, eu também falava da morte do meu
avô no dia seguinte. Em casamentos ou velórios, o mundo é sempre essa mesma
coisa inexplicável que segue em frente.
quando os Yualapeng abandonaram sua terra natal para fugir do extermínio, eles
descreveram sua partida como “uok mamat yuleyule pahl”, ou “volta grande para
enganar os fantasmas”. Meu coração estará sempre com eles enquanto os imagino
guardando as armas, juntando os víveres, queimando as casas que restam na
aldeia. Mas como eles, eu também aprendi que se precisa partir. Mesmo quando
não vê sentido na partida, ou quando não se tem palavras para descrevê-la.
dois anos antes do meu avô morrer, eu escrevi outro conto de presente pra
alguém. Era sobre um professor universitário que, morrendo por uma patologia da
laringe causada pelo excesso de palavras, resolve viver em uma tribo da
Sibéria, conhecida por possuir a língua mais lacônica do mundo. A história fala
sobre o silêncio, sobre o movimento e sobre a companheira que o acompanha na
viagem. E o fato do protagonista morrer ao final dela não chega a apagar o que
ele encontra de curativo nessas três descobertas.
nada nesse texto fala sobre meu avô: pelo contrário, ele é um obituário
estranho, que tem a mim mesmo como protagonista e meus personagens como coadjuvantes.
Àqueles que me acusarem de egocentrismo, responderei que é bem mais difícil ter
de lidar com as perdas assim. Mas que minha solidão ao encarar os meus mortos é
o que me dá fortaleza pra lidar com os vivos. Junto com o silêncio, com o
movimento, e com aqueles que caminham do meu lado.
por um bom tempo, o passatempo preferido do filho da minha ex-mulher foi subir
degraus pra descê-los de novo, sem motivo aparente na trajetória. Talvez ele já
intua que é preciso caminhar, e esteja mais preparado do que eu pra lidar com
os buracos do percurso. Mas é provável que, quando ele precisar fazê-lo, as
palavras dele se mostrem tão insuficientes quanto as minhas. Ainda assim, eu
espero estar por aqui pra que a gente possa trocá-las um com o outro. E mais do que isso,
pra que a gente possa dar as mãos enquanto caminha adiante.