terça-feira, novembro 28, 2006

confissões de um ex-cidadão do mundo

nunca me senti tão estrangeiro. E não são os Estados Unidos da América que fazem isso comigo. Verdade que a cara dos funcionários da alfândega não colabora muito pra eu me sentir em casa. Como não colabora a proibição de levar pasta de dente no avião a não ser que seja num saco plástico transparente (alguém me explica?) E como definitivamente não colaboram as placas que dizem que fazer piadas sobre bombas pros fiscais da alfândega é passível de punição por lei (tristes aqueles que perdem a capacidade de rir de si mesmos, aliás). Não surpreendentemente, um fiscal da alfândega me cutucou quando fui tirar uma foto da placa e eu tive que enfiar a câmera na mochila às pressas (o registro fora de foco tá aí em cima).
Mas não, não é isso que incomoda. A verdade é que já ontem, ainda no Salgado Filho, eu já tinha me dado conta que não me sentia mais tão cidadão do mundo como em outros tempos. E não sei bem se a culpa é minha ou do mundo. Mas como me disseram um escritor deveria ser acima de tudo “humano”, vou tomar a atitude mais humana de todas, que é botar a culpa nos outros. E partir do princípio que foi o mundo que começou a briga, quebrou a xícara e deu laxante pro cachorrinho.
Foi em algum ponto ao longo desse ano que eu senti que o filho da puta do mundo tinha fugido definitivamente do meu controle de acompanhá-lo. É verdade que um pouco disso é circunstância. Depois que eu passei a morar num lugar sem assinatura do jornal nem TV a cabo e o google virou a forma predominante de informação na minha vida, eu passei a receber só a informação que ativamente procuro. Pelo menos na maior parte do tempo. E aí nos restritos momentos em que a mídia não-interativa se intromete na minha vida (geralmente uns dois almoços semanais de cerca de hora e meia na casa dos meus pais, ou alguma noite solitária em que eu perambulo além dos cinco ou seis sites de sempre na internet), eu tenho a impressão de que não tenho mais como dar conta do ritmo em que as coisas acontecem. E o problema não é mais simplesmente não conseguir entender o mundo. O problema é não ter mais certeza se o jeito em que eu vivo nele ainda faz algum sentido.
Eu sei que vinte e sete anos parece cedo pra estar se queixando que a vida anda rápido demais. Mas é sincero, mesmo que seja exagerado. Até porque o pior de tudo é pensar que a situação só tende a piorar. Porque hoje, por mais que me queixe, a verdade é que eu represento a nata intelectual da sociedade. Pelo menos em termo de faixa etária. Afinal, ainda faço parte do estreito grupinho que consegue lidar com o transbordamento de informação e ao mesmo tempo ter idade e educação suficiente pra conseguir fazer algum sentido dele. Mas esperem uns cinco anos, e aí vejam se vocês vão conseguir acompanhar esses adolescentes que cresceram no MSN quando eles entrarem na pós-graduação.
O que mais me incomoda, no fundo, é que as formas de comunicação se renovam muito rápido, e aquelas que foram minhas (e da humanidade) até agora parecem se esvair. E isso não é o futuro, é o presente. Mesmo postar isso aqui nesse exato momento (por mais simples que pareça) já parece ocupar com atraso um espaço e um formato e uma linguagem que já foram colonizados e determinados por outrem. Verdade que isso é uma frustração eterna do artista, mas ao contrário de coisas como “a língua portuguesa”, ou “o livro”, que pareciam imemoriais, blogs, youtubes e congêneres estão sendo inventados por caras da minha idade do outro lado da rua. Pela primeira vez na história, mudar o mundo sem sair do sofá de casa é uma possibilidade factível (pensem em quantos milhares de relacionamentos o tal Orkut Seiláoquê destruiu pela idiossincrática invenção de uma página de recados que todo mundo podia enxergar). Mas pros noventa e nove vírgula nove por cento que chegam atrasados, a frustração de não conseguir só se torna maior.
E na mesma linha de raciocínio, se a infelicidade das pessoas no mundo moderno de fato era fruto de não poder ser ou ter o que elas vêem na TV, a web só há de piorar as coisas cada vez mais. Porque, sem exagero, a oferta de coisas para se ter, ver, fazer e viver é bilhões de vezes maior (eu, por exemplo, ainda não consegui superar o trauma de saber que de alguém financiou esse cara). Então fechem as portas e as janelas, maidarlins, e protejam-se dos rumores da rua. Ou então deixem entrar todos os insetos, e preparem-se para a grande depressão.
Não me parece que eu seja uma voz de consenso, no entanto. Pelo contrário, a reação natural da maior parte da minha geração a tudo isso, como a de todas as outras antes dela, parece ser feita de frases tipo “ah, isso é modismo, vai passar”, “isso é tudo uma grande bobagem”, “bons mesmos eram os velhos tempos”, e outras variantes nessa linha. E de fato eu ando ouvindo isso cada vez mais ao meu redor, e de gente que não tem sessenta, e sim vinte e poucos anos. Mas por experiência própria, tipo lembrar de professores meus no início da faculdade me pedindo pra procurar artigos porque “ah, eu não gosto dessas coisas de internet, não me dou bem com o computador, sabe”, não me parece que a opção de aderir ou não à modernidade seja completamente verdadeira. O mundo não dá opção, o mundo engole a tecnologia e é transformado por ela, fazendo que não seja possível viver dentro dele e ignorá-la. Mesmo que a gente opte por não dirigir, a gente ainda assim tem que aprender a atravessar a rua cheia de carros pra não ser atropelado. E ao ver que em pleno ano de 2006 a gente continua pensando em lançar livros, gravar discos e fazer filmes em 35 mm, isso às vezes me parece um frenesi riponga quase tão bizarro viver sem luz elétrica. Ou pior do que isso, parece simplesmente tentar ignorar os carros e atravessar a rua sem olhar pros lados.
E o mais bizarro de tudo isso, no fim das contas, é saber que, no meio desse tsunami todo, os fatos fundamentais da condição humana não mudaram um milímetro. O mundo em volta pode ser um troço completamente diferente do século passado, da década passada, do ano passado, mas a porra do DNA não deve ter mudado mais do que uns poucos pares de bases. E os hard facts de estar vivo e preso a um corpo que come, dorme, fode, defeca e apodrece continuam exatamente os mesmos. Então a aeromoça pode até dar o aviso de “desliguem os seus wi-fis” antes da decolagem, mas isso não disfarça o fato de que se a porra do avião cair a morte vai ser a mesma de sempre. E tentar equilibrar a condição humana de sempre com o mundo nunca dantes visto é um troço que dá um nó na cabeça. Porque o aumento exponencial das escolhas e opções disponíveis não é capaz de mudar o fato inexorável de que elas continuam todas únicas, intransferíveis e sem precedentes.
E é assim confuso, modesto, com a dimensão da própria pequeneza e com os pés mais fincados no meu próprio nicho, que eu rumo humildemente pro centro do mundo uma vez mais. Nunca antes tão livre pra andar pelo mundo, e nunca antes tão preso ao que eu já sou e não posso mudar. Porque no fim das contas dizer que foi o mundo que quebrou a xícara é só uma maneira de esconder que quem envelhece é a gente. E, por mais que tente evitar, a gente vai se tornando cada vez mais parte do próprio nicho, da própria casa, da própria vida. Todo gesto é uma escolha, toda escolha é uma porta que se fecha, toda porta que se fecha é uma morte pequenininha. E isso não é necessariamente ruim, os nossos neurônios também morrem numa velocidade astronômica a partir do nascimento e nem por isso a gente fica mais burro. Limar, refinar, podar, esse trabalho de ourives todo é necessário, e é intrínseco a estar no mundo. Mas que dói um pouquinho, ah dói.
E enquanto as portas do mundo se abrem e as nossas se fecham, por mais devagar que aconteça, estrangeiro é aquilo que a gente vai se tornando. Coincidência ou não, da última vez que eu tinha vindo pra essas bandas, uns meses antes do Bin Laden mudar tudo, o fiscal da alfândega olhou pro montão de entradas e saídas no passaporte e disse “Welcome back, Sir”. Hoje, seja por causa do passaporte novo, do buraco no sul de New York ou por alguma coisa transparecendo no meu rosto, tudo o que o cara que me botou pra dentro do país me disse ao fazê-lo foi “Take care”. Por mais estúpidos que sejam, às vezes esses americanos acertam na mosca.

4 comentários:

Anônimo disse...

DUCARALHO. abraço.

Anônimo disse...

DUCARALHO. abraço.

olavoamaral disse...

e aih, guri, onde tu anda?

Anônimo disse...

Muito bom.
É sexta-feira e infelizmente, quando não tenho mais nada para fazer que acabou entrando no teu blog.
E junto comigo leem teus textos algumas pessoas que trabalham comigo, ou seja, teu blog vai saindo aos poucos do obscuro. Mas compreendo que cada vez mais, surgem mais gente e vai ficando mais ´difícil, mas o principal é acreditar que tu é bom e tu pode, os outros que se fodam. Faz o teu...