quinta-feira, julho 26, 2007
o tempo passa, a angústia aumenta, mas os baralhos seguem exatamente os mesmos
as fossas abertas do cinema brasileiro
ainda não consegui decidir se esse “Saneamento Básico” do Jorge Furtado é o supra-sumo da auto-ironia ou o maior ato falho da história do cinema brasileiro. Aliás, também não consigo entender muito bem por que diabos eu sou a única pessoa que parece estar se fazendo essa pergunta. Mas enfim, vamos aos fatos.
o argumento inicial do filme já foi amplamente divulgado pela mídia, e consiste num questionamento metalingüístico interessante: uma cidadezinha da serra gaúcha precisa fechar uma fossa aberta, mas a única verba pública de que dispõe é pra fazer um vídeo, ganho num concurso de baixo orçamento pra cidades com até 20.000 habitantes. Sem muita opção, os moradores resolvem fazer um vídeo sobre o “monstro da fossa” como pretexto pra usar o dinheiro para fechá-la.
a questão levantada pelo filme urge. Afinal, qualquer cidadão medianamente informado hoje em dia sabe que a dependência de financiamento quase que inteiramente público (via leis de incentivo e concursos) é há tempos a grande fossa aberta do cinema brasileiro, na qual ninguém da área tem muita coragem de tocar. Porque ao revirar a fossa surge a boa e velha questão insolúvel: quantas casas com saneamento básico valem um longa-metragem? Quantas escolas? Quantos postos de saúde? A resposta não é fácil nem óbvia, e provavelmente não tem como fugir da total arbitrariedade. A não ser que, feito um poeta russo entusiasmado e estúpido do início da revolução cujo nome me foge, a gente decida que “um queijo vale mais do que toda a obra de Pushkin”. Mas isso é ridículo, triste, e em última análise não só desumano como mentiroso. Eu pelo menos me sinto convicto e confortável em dizer que a obra de Pushkin vale muito mais do que um queijo. Mas e um milhão de queijos? Ou uma enorme indústria de queijos que empregue um montão de pessoas? E aí, novamente, chega o ponto em que a pergunta se torna insolúvel, porque felicidade não se compra, assim como não se compram vidas humanas. E eu sinto sincera pena do cara do governo que tem que equacionar esse tipo de coisa.
apesar de, ao ouvir falar do argumento do filme pela primeira vez, eu ter pensado que, apesar da questão ser importante, parecia uma idéia difícil de fazer funcionar, a verdade é que o filme, pelo menos inicialmente, é interessante, bem executado, simpático e francamente muito engraçado (particularmente pra quem já tentou fazer um filme amador entre amigos e/ou cônjuges). E, às custas da ignorância dos personagens, das cenas toscas da produção amadora e do interesse crescente dos personagens por “essa história de cinema”, o filme consegue ser divertido e ao mesmo tempo levantar um debate mais do que necessário: afinal, do que vale fazer um filme quando se tem uma fossa a fechar?
as à medida que seus protagonistas vão esquecendo a questão da fossa e se entusiasmando com a idéia de fazer cinema, o filme vai tomando um certo tom de panfleto didático de exaltação ao próprio métier e defesa do investimento na área, e evolui devagarinho prum tom de “final feliz de comédia em que tudo acaba dando certo”. E no fim das contas o filme dentro do filme é um sucesso, todo mundo sai ganhando com ele, e tudo de fato parece acabar lindamente bem. Isso por si só seria meio que um desmérito, já que faz o desfavor de, após levantar uma questão urgente, fechá-la duma maneira um tanto autocomplacente. E quando eu saí do cinema me sentindo meio irritado, eu achei que fosse por isso. Mas parando pra pensar, voluntariamente ou não, o desfecho é muito mais revelador que parece. Acompanhem os seguintes detalhes:
1. A fossa continua aberta. Concordo que, se a idéia é argumentar que o investimento em cinema vale a pena mesmo quando o país tem fossas abertas, esse detalhe era necessário. Mas é surpreendente como os personagens do filme parecem esquecer disso facilmente: aliás, esse “pequeno” detalhe só vem à tona porque o cara que estava construindo a fossa reclama que faltou verba pra ele terminar a fossa. Do pessoal que originalmente pegou o dinheiro pra fechar a fossa com o pretexto de fazer um filme (e acabou fazendo um filme com o pretexto de fechar a fossa), não se ouve um pio.
2. As razões apresentadas pra dizer que “o investimento no filme valeu a pena” são de um capitalismo simplista. Listemos tudo o que “acaba bem” no fim do filme: o casamento e o negócio de móveis do casal de realizadores floresce e faz um belo marketing em cima do filme; o dono da câmera, que é proprietário também de uma pousada, recebe investimentos do setor hoteleiro, feitos por uma mulher linda; o “co-diretor” e montador do filme ganha notoriedade local e espaço pra falar abobrinhas em público, além de um cachê de 2.000 reais; a atriz principal do filme vira uma estrela; a região ganha um punhado de turistas.
sinceramente, se é por isso que a gente precisa investir em cinema, me dêem os queijos. Não que eu seja contra a idéia de investir em cinema. Pelo contrário, minha opinião é que dar 10.000 reais prum vilarejo tosco fazer um vídeo é uma puta idéia. Mas essas são todas as razões erradas pra isso. O item certo pra obter esse tipo de retorno deveria constar no orçamento público como “publicidade turística”, ou qualquer outra coisa. Mas não é cinema, muito menos cultura. Se tem uma boa razão pra dar 10.000 reais pra alguém filmar algo, é pra fazer as pessoas pensarem. Tanto quem faz como quem assiste. E pensarem sobre questões relevantes, inclusive sobre a necessidade de gastar dinheiro fazendo cinema. O que, suponho eu, tenha sido o que os financiadores públicos do filme pensaram quando investiram no projeto. Estranhamente, a idéia de mérito que o próprio filme passa no fim das contas parece absolutamente diferente.
3. Os beneficiários do filme são basicamente os seus realizadores. Isso é o mais engraçado, mas é inegavelmente verdade. Todo mundo que é mostrado se beneficiando diretamente com o filme (o dono da pousada, os donos da loja de móveis, o co-diretor, a atriz principal) são os seus próprios realizadores, que fazem marketing pessoal em cima da própria obra e recebem amplos benefícios secundários. O retorno de interesse público de fato é mísero: algumas dezenas de turistas a mais, e as risadas que a população dá ao assistir o filme. Vá lá, talvez eu esteja sendo ranzinza: acho que se pode argumentar que boas risadas não sejam um retorno mísero, e que elas sejam motivo válido e suficiente pra fazer um filme. Mas é inegável que o grosso do retorno (e praticamente todo o benefício financeiro) aparece indo pra mão dos realizadores. Enquanto a fossa continua aberta.
4. 30% da verba é gasta pagando direitos autorais para os herdeiros de Billie Holiday. Um pouco menos grave, mas igualmente intrigante é o fato de que de 10.000 reais do projeto, inexplicáveis 3.000 (com a obra da fossa inacabada!) vão pra comprar os direitos duma trilha sonora da Billie Holiday! Sob a bênção de alguém que diz: “é, é caro, mas tem que ser essa música”. Excuse me? Isso é pra ser um final feliz? Eu usaria um absurdo desses pra fazer campanha em prol do domínio público, ou então pra fazer uma denúncia contra a falta de economia com o dinheiro público. Mas dizer que “tem que ser assim” é o fim da picada.
dizer que “o investimento em arte é válido” não tem nada a ver com dizer que “qualquer investimento em arte é válido”. Aliás, o outro problema latente do cinema brasileiro (que anda de mãos dadas com o financiamento público, naturalmente) é que uma parte significativa dele (não por acaso, a mais visível) tem padrões inexplicavelmente hollywoodianos. Pra filmes por vezes muito ruins. O que faz com que (a) boa parte dos filmes custe significativamente mais do que poderia custar (com pouco acréscimo de qualidade artística de fato, porque isso raramente se compra) e (b) os poucos realizadores que conseguem criar público pra pagar pelo menos uma parte dos seus filmes, ao invés de usarem isso pra se tornar independentes, geralmente passam simplesmente a pedir mais dinheiro pra fazer filmes mais caros, perpetuando o ciclo de dependência. Mas como ninguém tá botando grana do seu bolso mesmo, afora o contribuinte, quem se importa?
sinceramente, 3.000 reais em uma trilha duma cantora morta prum filme de 10.000 (que na verdade eram 2.000 inicialmente, já que a obra ia custar 8.000) me parece o clássico exemplo de desperdício do cinema brasileiro. Vá lá, pode ser que fosse a melhor trilha do mundo praquela cena. Mas pra um filme desse tamanho e orçamento, não importa. Não dá, e ponto. Está fora de alcance, assim como filmar uma batalha de naves espaciais, ou algo do gênero. E que se pegue um violão e grave uma trilha parecida, ora bolas. Ninguém vai morrer com isso. E a gente vai fazer um cinema possível pra cidade. Ou pro país. Que provavelmente, além de mais barato, vai acabar sendo mais representativo do Brasil que ele quer mostrar (e que está pagando o filme, diga-se de passagem). Mesmo que seja um pouco mais tosco. Ou exatamente por causa disso.
mas como todo mundo parece feliz no fim do filme, ninguém parece se importar muito com nada disso. E eu não sei se era a intenção dos realizadores do filme de fora, mas o resultado do filme de dentro, quando olhado com cuidado, acaba se tornando não uma defesa do investimento em cinema, mas um retrato relativamente significativo de alguns dos maiores problemas, distorções e maus hábitos do cinema brasileiro. Se isso foi consciente (e é possível que pelo menos parcialmente tenha sido), isso é um baita mérito, ainda que meio escondido. Mas o tom de final feliz meio autocomplacente do fim do filme parece sugerir que é mais provável que a maior parte dessas controvérsias tenham simplesmente emergido meio por acaso. E, se for esse o caso, é bastante sintomático que isso tenha acontecido sem que ninguém se dê conta. Talvez porque todo mundo no meio já tenha se acostumado com elas. Igualmente sintomático, e talvez mais preocupante, é o fato de que praticamente ninguém na crítica parece ter notado esses detalhes tampouco; pelo contrário, todo mundo parece ter exaltado o filme como uma “comédia prazerosa de humor inocente e sagaz”, ou uma “defesa da produção nacional”, sem conseguir enxergar o óbvio latejante.
pra mim, no entanto, o que salta aos olhos é o quanto de podre se esconde num final aparentemente feliz sem que ninguém sinta o cheiro. Ironicamente, a impressão que fica é que os realizadores do filme de fora fizeram o mesmo que os realizadores do filme de dentro. Ganharam verba pública pra fazer o filme e tentaram usar essa verba pra, no processo de fazê-lo, tentar tapar as fossas abertas do próprio cinema brasileiro. Mas, intencionalmente ou não, mudaram de rumo em algum ponto do caminho. E acabaram por deixar a fossa mais exposta ainda.
terça-feira, julho 24, 2007
se é pra ir embora...
sexta-feira, julho 13, 2007
o óbvio, o reiterado e o repetido
"Praticamente toda música é derivada de outros artistas. Se você é guitarrista numa banda de rock, toca notas em progressão de um jeito que alguém já fez. Isso num instrumento que não foi você quem inventou. Coloca as notas numa ordem que rearranjou de alguma canção de que gosta, produz num instrumento, contextualiza inserindo outros instrumentos e chama isso de sua criação. É basicamente o que faço também. Nenhuma lei de direito autoral diz que roubo música."
(Gregg Gillis, vulgo Girl Talk, sampler convicto, sobre a acusação de "roubar música dos outros")
também nunca entendi como alguém de fato pode reclamar pra si o mérito de ter "inventado" algo. Na ciência muito menos do que na arte, aliás. Mas alguém há de ter trabalhado pesadamente o inconsciente coletivo do mundo ocidental pra encobrir esse fato escancarado. Em todo caso, é sempre bom ver gente levantando a voz pra reiterar o óbvio.
quarta-feira, julho 11, 2007
mergulhando corajosamente nas águas do futuro
(com créditos pro pelizzari, jp cuenca e scott pelo telefone sem fio).