sexta-feira, fevereiro 27, 2009

posts perdidos no meio de um caminho sem wi-fi (i): frestas

não sei se alguém já disse que somos a soma dos nossos limites. Sei lá, parece algo que alguém já teria dito numa frase célebre. E também parece verdade.

a lógica é um pouco darwinista: no fim das contas, fartura nunca induziu adaptação ou evolução em ninguém. As dificuldades e os limites, por outro lado, construíram a vida inteira a partir de um sopão de moléculas. E a individualidade surge do que é imposto, do que não pode ser mudado. O que é flexível, plástico e cheio de espaço acaba estagnando. Ou simplesmente caindo no fluxo.

ando no Nordeste há quase um mês, e o excesso de espaço me incomoda. Em cidades e bairros que até pouco tempo atrás eram um punhado de casinhas de reboco, o espaço pra qualquer coisa crescer parece imenso. E o resultado disso parece quase sempre uma Miami disforme.

meu possível quem sabe futuro lugar de trabalho em Natal fica a duas quadras duma estrada de várias pistas. A referência pra entrar na rua é uma revendedora de veículos gigantesca da Chevrolet. Do outro lado da avenida, há um shopping a cada três ou quatro quadras.

saindo da estrada, por outro lado, a meras duas quadras de distância, a rua é de terra batida. As casas parecem ter sido tiradas de uma favela mais ou menos arrumadinha. Eu, que não almocei, procuro um lugar pra comer. O pessoal que trabalha ali diz que o jeito é dirigir até o shopping.

LA, Miami, Barra da Tijuca ou Natal, já pouco importa. A impressão é só a de estágios diferentes de um mesmo processo que acaba por formar um emaranhado inespecífico de avenidas de várias pistas, carros cruzando de um lado pro outro, e arranhas-céus disputando espaço entre as casinhas simples que ainda restam. Tudo o que importa fica ao lado da estrada. Ser pedestre, nem pensar, exceto num curto espaço de orla marítima entregue aos turistas.

porque parece que tudo que tem espaço pra crescer acaba evoluindo hoje em direção ao mesmo capitalismo indistinto sem espaço urbano, a uma mesma lógica repetida de discursos, mentes e condomínios fechados.

a não ser nos lugares onde existem limites.

limites como as ladeiras infectas levando até a cidade alta de Salvador. Como o cenário brega de cartão postal desbotado da orla de Copabana. Como os canais poluídos e favelas de palafitas do centro do Recife. Ou até como os prédios baixos de famílias judias do Bonfim em Porto Alegre. Onde não há espaço pra estradas e especulação imobiliária, parece que os fabricantes de condomínios perdem um pouco o vigor. Deixando espaço pra algo crescer que se parece um pouco mais com o que eu chamaria de vida.

vida que parece florescer exatamente sobre a decadência de alguma outra coisa. Igrejas barrocas no Pelourinho viram campo de pelada pra moleques das ladeiras de Salvador. Grama nasce entre os ladrilhos toscos de estradas coloniais. Prédios históricos caem em pedaços e são cobertos por montanhas de graffitis coloridos. Prostitutas e militares aposentados preenchem o espaço efervescente por trás das fachadas com espessura de cartão postal em Copacabana.

e de alguma forma essa decadência me parece infinitamente mais aprazível do que o crescimento obstinado de onde há espaço. Até porque decadência é uma palavra relativa: meninos jogando bola no pátio da igreja parecem uma evolução enorme em relação a padres vestidos de branco falando bobagens num altar banhado em ouro. No fundo, o que cresce pelas frestas no meio das ruínas de algo em destroços parece conseguir escapar da lógica dominante com muito mais facilidade do que o que cresce com espaço, meios e planejamento. E o que quer que ainda queira ser único em meio ao fluxo contínuo e acachapante do capitalismo global só parece conseguir crescer nas frestas.

e se em nossa geração o pouco que cresce com graça o faz nos espaços mais restritos, disfarçado de decadência e estrago na paisagem, é interessante nos perguntarmos onde crescerá algo que valha a pena no futuro. Uma vez que a miamização do mundo estiver concluída, espaço certamente haverá muito menos. Então sei lá, talvez ainda haja esperança: se a lógica vale alguma coisa, talvez nunca haverão tantas frestas apertadas pra forçar o mundo a se transformar em alguma outra coisa que não o que era antes.

verdade que é pouco provável que essas novas frestas gerem especificidades geográficas bonitas como as que ainda restam hoje, já que o mundo é cada vez mais igual em todas as partes e seus limites e furos também o serão. Mas talvez as novas frestas pelo menos permitam o surgimento de algo único no tempo, senão no espaço, já que o formato exíguo e sinuoso do espaço que sobrar vai ser forçosamente diferente de todos os espaços anteriores.

então quem sabe alguma espécie de discurso novo cresça entre os pequenos espaços escondidos em cantos remotos da rede e nas ruelas entre os condomínios fechados, como se fosse vegetação entre tijolos de igrejas barrocas, ou uma pelada espontânea com bola de meia no pátio da prisão. O mundo é cada vez mais o mesmo, mas os limites e os buracos seguem aí: resta saber aproveitá-los pra tentar criar um troço novo entre as frestas, e existir como ainda não se existiu exatamente antes. É o mínimo que eu esperaria de um bando de gente que quisesse um dia se chamar de uma geração.

3 comentários:

Anônimo disse...

quem sabe nao está aí a tua chance.

Anônimo disse...

Endosso o que a Vera disse, meu inço querido.

olavoamaral disse...

o que raios é um inço, forchristsake?