quarta-feira, setembro 15, 2010

nossas últimas versões

















então vocês começarão com versões tão diferentes da história que rirão à beça quando ganharem coragem pra trocá-las pela primeira vez. E descobrirem que apesar de terem estado nas mesmas cenas, ou mesmo juntos no centro do palco, vocês até então tinham feito parte de peças distintas, casualmente encenadas no mesmo teatro. Que tinham sido coadjuvantes involuntários de um texto que nem sequer tinham lido. E depois de rirem e beberem mais vinho e fecharem a janela pros vizinhos não verem o que vocês farão depois, vocês acordarão no outro dia dispostos a não deixarem mais suas versões divergirem. E passarão a se telefonar todos os finais de tarde dispostos a contarem e ouvirem como foram seus dias, e ao se encontrarem num bar qualquer revisarão suas versões, trocarão críticas, se frustrarão com as discrepâncias. Mas estarão sempre prontos pra puxar o lápis e rabiscar anotações, correções, maneiras de deixar as histórias mais compatíveis. E em algum momento, pra garantir que o espetáculo não saia do rumo, vocês talvez cheguem a unificar o cenário, contratem um cenógrafo ou um arquiteto e debatam longamente na loja de móveis pra ter certeza de que aquele abajur realmente combina com o enredo, que a essa altura vocês já têm a certeza de que é de fato o mesmo. E de tão certos de transitarem na mesma peça, tão convencidos de terem se tornado os personagens que representam, talvez vocês comecem então a deixar os ensaios de lado, seguros que serão capazes de improvisar, de se adaptar aos deslizes e aos esquecimentos um do outro, às falas empacadas na ponta da língua. Até o dia em que uma entrada ou saída de cena inesperada de um se atravesse na frente da história do outro, interrompendo bruscamente o fluxo da narrativa e fazendo vocês pararem a encenação pra revisar as anotações, descobrir exatamente quem errou a deixa. E cometerem o erro de tirar os scripts do bolso, apenas pra se darem conta de que os textos que vocês interpretam não são mais os mesmos. Sim, haverá pontos em comum, um mesmo cenário e uma mesma época. Mas as discrepâncias entre os acontecimentos serão óbvias, uma conversa romântica numa praia deserta transformada em um momento entediado numa estação de trem, os protagonistas de uma das histórias reduzidos a coadjuvantes da outra. E sem saber o que fazer com personagens tão distintos num cenário em comum vocês retrocederão para trás das cortinas sob aplausos tímidos, e sairão do teatro cada qual para o seu lado. Em camarins separados, trabalharão febrilmente em reescrever suas histórias, já não pra fazer delas a mesma, mas simplesmente pra fazer sentido, encontrar um fio narrativo pras falas desconexas e personagens desencontrados. E apelando pra suas soluções dramáticas preferidas, sem se preocupar demais com os fatos, vocês se converterão uma vez mais em ficcionistas onipotentes. Começando a gostar das suas novas versões, vocês as relerão antes de dormir e as carregarão no dia seguinte, tirando-as do bolso pra folhear no metrô e mostrar pros amigos. E começarão a interpretar seus novos personagens ao natural, antes mesmo de terem muita idéia da continuação do enredo. Até o dia em que vocês se encontrarão em alguma esquina movimentada, e sem que nenhum dos dois tenha nada de urgente pra fazer entrarão num café pra falarem do que andam fazendo. Então tirarão os textos do bolso, lembra aquela história que a gente tinha tentado escrever?, e mostrarão um ao outro suas últimas versões. E lendo aquilo, incrédulos, saberão que já não há nada mais de uma história em outra, que as falas estão todas trocadas, que os personagens que um dia foram seus já são outros nos quais vocês sequer se reconhecem mais. Sem querer aceitar, vocês ainda tentarão trocar reclamações banais, acusações baratas, cobranças de protagonismo. Mas a revolta será inútil, pois tão logo vocês virarem as costas mesmo essas reclamações já terão sido reescritas. Então o café termina, e sem saber o que fazer vocês se despedem rápidos e desajeitados. E caminham pra casa, abismados com a constatação de que a história que vocês carregam no bolso é o último exemplar de sua espécie. De que já não há coautores, atores ou espectadores. E de que ela sobreviverá apenas até o momento em que por cansaço ou alzheimer vocês resolvam esquecê-la. Já em casa vocês pegarão o texto, brincarão com as páginas olhando distraídos pra sacada, pra lata de lixo, pra lareira acesa. E saberão que o desaparecimento daquela versão depende apenas da vontade de começar um texto novo. A caixa de fósforos está sobre a mesa. Dou-lhe uma, dou-lhe duas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Acredito pouco em coincidência, mas não que duvide de todo...
o caso é que o ser humano é pouco original, não? o enredo muda bem pouco, mas sempre é possível que a forma enriqueça o fato. Mais importante, no entanto, é não ignorar que as leituras serão tão diversas quantos forem os pares de olhos a ler, e isso não vale só para ficção, não!? abraço