turistas ocidentais apontam câmeras sem pudor pra miséria na Índia, como se fosse espetáculo, matéria prima pra impressionar no facebook ou em jantares de família. Até aí nada de novo pra quem está acostumado a cruzar com os jipes das favela tours na sua própria cidade. Desta vez, no entanto, o que salta aos olhos é que as câmeras que apontam na direção oposta são tão frequentes quanto. Em cada esquina há um turista indiano pedindo pra tirar fotos com um rosto ocidental. Meu trem metido a besta, com suas suítes, funcionários de turbantes e gringos de pele branca, é uma atração turística pro povo parado na estação. E minha silhueta com uma câmera na janela suscita tanto interesse (e tantas câmeras levantadas) quanto a paisagem do lado de fora.
apontar uma câmera para algo hoje em dia já não rouba o espírito nem transforma: é antes uma forma de, face à impossibilidade de apreender a experiência do mundo, torná-la compreensível através de sua redução ao familiar prazer do consumo. Uma resposta estereotipada que nos exime, de certa forma, de fazer algo mais com o mundo – seja pensar sobre ele, interagir de fato ou tentar mudá-lo – pois guardá-lo na câmera, no HD, na gaveta já parece uma maneira de relacionar-se. Dessa forma, fotografar resolve boa parte do não saber o que fazer com a realidade ao redor (quem saberia o que fazer com a miséria na Índia, afinal?). E ao mesmo tempo satisfaz. Como um condicionamento de segunda ordem, lega prazer à experiência da viagem, uma sensação de algo precioso adquirido que se impõe ao desconforto do calor, do cansaço e da gastroenterite, da mesma forma que o celular comprado justifica o desprazer do trabalho que o pagou.
e é peculiar e sintomático que nesse país (tão estranhamente capaz de aparentar paz em meio ao caos, e naturalidade frente ao abismo social), a experiência da fotografia mútua se torne um fenômeno tão extremo. De um lado ou de outro da janela do trem, interagimos uns com os os outros ao mesmo tempo que nos tornamos objetos fixos e imagens paralisadas. Escondidos atrás de nossas telas coloridas, nos contentamos em digitalizar o lado oposto, redimensionando-o em manejáveis megapixels que caibam no tamanho de um iPhone. Uma experiência fotográfica do mundo que é um gesto de curiosidade, mas também de aceitação – do valor de consumo do ícone, do selo de qualidade do índice, da dispensabilidade do símbolo, e da suficiência do que fica no cartão SD. Provas fugazes da realidade de um mundo que guardamos ao invés de explorar, como um e-mail não lido que deixamos pra depois por falta de tempo e que nunca mais será aberto.
e ver o mesmo comportamento na câmera que aponta de volta pra minha, luminosa em meio à sujeira da estação de trem, talvez seja o prenúncio de uma paz estranha. Um mundo onde os extremos do planeta (e da pirâmide social) entram em comunhão na experiência do consumo, e do prazer de ter uma máquina com botões capazes de guardar a realidade. Que a essa altura já é o brinquedo preferido de ambos os lados, ao proporcionar a sensação de adquirir algo único ao preço virtualmente nulo dos megabytes armazenados. Um mundo que abraça o objeto e a imagem, e ao fazê-lo se despe um pouco do sujeito e da palavra, em uma aceitação pacífica da realidade do outro lado da lente. Que, se antes era mutável, ao ser capturada na tela digital se torna fixa e inexorável como um roteiro de Hollywood. Um mundo mais injusto e mais satisfeito do que se sonhou um dia, e que pouca gente esperava encontrar por aqui, logo após a curva do fim da história. Ou pelo menos do ponto em que a História começou a perder a letra maiúscula pra se tornar cada vez menos coletiva e mais fragmentada, tão múltipla como as incontáveis imagens que se amontoam no celular de cada um. E talvez tão permanente quanto, esperando apenas o próximo vírus, crash ou míssil pra apagar a profusão de luzinhas e tornar-se novamente uma tela preta.
apontar uma câmera para algo hoje em dia já não rouba o espírito nem transforma: é antes uma forma de, face à impossibilidade de apreender a experiência do mundo, torná-la compreensível através de sua redução ao familiar prazer do consumo. Uma resposta estereotipada que nos exime, de certa forma, de fazer algo mais com o mundo – seja pensar sobre ele, interagir de fato ou tentar mudá-lo – pois guardá-lo na câmera, no HD, na gaveta já parece uma maneira de relacionar-se. Dessa forma, fotografar resolve boa parte do não saber o que fazer com a realidade ao redor (quem saberia o que fazer com a miséria na Índia, afinal?). E ao mesmo tempo satisfaz. Como um condicionamento de segunda ordem, lega prazer à experiência da viagem, uma sensação de algo precioso adquirido que se impõe ao desconforto do calor, do cansaço e da gastroenterite, da mesma forma que o celular comprado justifica o desprazer do trabalho que o pagou.
e é peculiar e sintomático que nesse país (tão estranhamente capaz de aparentar paz em meio ao caos, e naturalidade frente ao abismo social), a experiência da fotografia mútua se torne um fenômeno tão extremo. De um lado ou de outro da janela do trem, interagimos uns com os os outros ao mesmo tempo que nos tornamos objetos fixos e imagens paralisadas. Escondidos atrás de nossas telas coloridas, nos contentamos em digitalizar o lado oposto, redimensionando-o em manejáveis megapixels que caibam no tamanho de um iPhone. Uma experiência fotográfica do mundo que é um gesto de curiosidade, mas também de aceitação – do valor de consumo do ícone, do selo de qualidade do índice, da dispensabilidade do símbolo, e da suficiência do que fica no cartão SD. Provas fugazes da realidade de um mundo que guardamos ao invés de explorar, como um e-mail não lido que deixamos pra depois por falta de tempo e que nunca mais será aberto.
e ver o mesmo comportamento na câmera que aponta de volta pra minha, luminosa em meio à sujeira da estação de trem, talvez seja o prenúncio de uma paz estranha. Um mundo onde os extremos do planeta (e da pirâmide social) entram em comunhão na experiência do consumo, e do prazer de ter uma máquina com botões capazes de guardar a realidade. Que a essa altura já é o brinquedo preferido de ambos os lados, ao proporcionar a sensação de adquirir algo único ao preço virtualmente nulo dos megabytes armazenados. Um mundo que abraça o objeto e a imagem, e ao fazê-lo se despe um pouco do sujeito e da palavra, em uma aceitação pacífica da realidade do outro lado da lente. Que, se antes era mutável, ao ser capturada na tela digital se torna fixa e inexorável como um roteiro de Hollywood. Um mundo mais injusto e mais satisfeito do que se sonhou um dia, e que pouca gente esperava encontrar por aqui, logo após a curva do fim da história. Ou pelo menos do ponto em que a História começou a perder a letra maiúscula pra se tornar cada vez menos coletiva e mais fragmentada, tão múltipla como as incontáveis imagens que se amontoam no celular de cada um. E talvez tão permanente quanto, esperando apenas o próximo vírus, crash ou míssil pra apagar a profusão de luzinhas e tornar-se novamente uma tela preta.
2 comentários:
concordo que esses retratos sao "uma forma de tornar compreensível através de sua redução ao familiar prazer do consumo", mas ainda assim acho que essa situação é movida pela curiosidade, pelo diferente, pelo quanto o mundo globalizado só é globalizado de verdade pra quem tem wifi em casa (uma minoria mínima em países não "desenvolvidos" como os nossos). E "pensar sobre ele, interagir de fato ou tentar mudá-lo" vem depois, naturalmente. essa curiosidade é linda e emblemática. e é ótimo que enfim seja bilateral
Eu também acho ótimo que seja bilateral. Mas acho que o fato da maneira dos dois lados se aproximarem tenha convergido pro mesmo gesto diz muito sobre o quanto o mundo já é globalizado. De uma maneira muito profunda, que dita muito do nosso comportamento em relação às coisas, às pessoas, ao diferente. Mesmo quando não tem wifi. Não que isso seja ruim. Mas não cansa de me surpreender.
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