rabisco isso aqui num caderninho esperando Neil Young entrar no palco, enquanto roadies barbudos montam o equipamento jurássico do Crazy Horse em um palco de Estocolmo num fim de tarde. Mas a verdade é que comecei a escrever esse texto há uns seis anos sem nunca terminar, o que quer dizer que a motivação é antiga. E talvez o texto mesmo tenha começado a se escrever lá por 1994, quando um pós-adolescente célebre de Seattle teve a infeliz ideia de usar uma frase de Neil Young em uma nota de suícidio. E ainda que o próprio autor da frase tenha prestado tributo a Cobain uns meses depois, eu sempre achei isso uma puta sacanagem com o velho Neil. E, mais do que uma sacanagem, uma interpretação sumamente burra do que Neil Young possa ter a dizer pra alguém. Porque Neil não é um cara de mentir, e se ele diz que é melhor queimar do que desaparecer é porque sabe do que fala. Mas o que ele fala empalidece frente ao fato muito mais eloquente de que ele queima continuamente e em praça pública há uns cinquenta anos, desde que pela primeira vez empunhou uma guitarra velha com uma trupe de músicos toscos com um nome de cacique indígena. E a eloquência da existência (e persistência) de Neil Young é uma evidência inesgotável da inexplicabilidade do que se chama de arte. O estilo é sujo, as músicas dificilmente têm muito mais do que três acordes, a voz é esganiçada (e às vezes desafina de fato), e até a acústica às vezes é ruim de propósito. Neil Young é a antítese de tudo que ensinaram em todas as aulas de música da história. E ainda assim ele é um dos poucos caras que em um minuto de audição, ou nem isso, conseguem transmitir a certeza absoluta de que a angústia dele é a mesma que você sente. Que ele queima como você e como todos nós, em direção à inevitabilidade termodinâmica do destino. Neil Young que, como uma comprovação viva da teoria do duende de García Lorca, já na infância foi recebido pela vida com diabetes, poliomielite e epilepsia. Que desde os primeiros acordes já avisava que isso aqui não era lugar nenhum, que cantava sobre assassinatos e acidentes de trânsito, mas também sobre cavaleiros de armadura, vontade de ficar chapado no porão e espaçonaves espalhando a raça humana pelo espaço na mesma música, e sem soar ridículo. Neil Young que passou uns três discos inteiros afundado em drogas e depressão a ponto de confessar em plena música que roubara uma melodia dos Stones porque estava acabado demais para escrever as suas. E que depois roubaria o riff de uma das canções mais lindamente tristes de todos os tempos para nos avisar como um bom amigo que estávamos todos mijando contra o vento. Que teve dois filhos com paralisia cerebral em dois casamentos diferentes e criou uma escola especial cujos convidados cometem alguns dos covers mais lindos da história da música. Que faria de um enredo rocambólico sobre folhas de coca e um México asteca sem maldade nem guerra uma das melhores razões pra existência da guitarra elétrica. Que conseguiria fazer o disco ao vivo de inéditas mais rock and roll de todos os tempos com uma trupe de monstrinhos do Star Wars no palco. Que gravaria alguns dos piores discos da história na década de 80 apenas pra ressurgir no final dela com um riff monstruoso que ninguém imaginaria possível depois do fim da história de Fukuyama. Que se tornaria líder espiritual da malfadada geração grunge, gravaria discos com os pirralhos do Pearl Jam e arrancaria elogios até de algumas das almas mais deprimidas do universo. Que com quase sessenta anos escreveria canções de cortar os pulsos com flores crescendo sobre a linha pontilhada da estrada. Que logo depois seria diagnosticado com um aneurisma cerebral e gravaria um disco correndo antes da operação, só pro caso de algo dar errado e ele não ter dito tudo o que podia. Que aos setenta lança discos que abrem com músicas de vinte e três minutos e quatro acordes, alternados com outros gravados numa cabine telefônica maluca no estúdio do Jack White. Que montou trens elétricos, escreveu autobiografias e inventou um carro elétrico e um formato de compactação de som pra substituir o MP3 (sério). E que beirando os setenta sobe no palco como um titã encurvado, gritando que o amor e só o amor vai acabar com o ódio porque, por mais que seja clichê, o fato é que se ele bater forte o suficiente na guitarra por quinze minutos enquanto aperta o pedal de distorção aquilo vai acabar parecendo verdade e foda-se o clichê. Até porque no fim das contas é verdade mesmo. Neil Young que veio ao mundo pra nos lembrar que existe combustível pra caralho na vida, e que cabra macho mesmo é aquele que queima por uma vida inteira, ao contrário do fósforo Cobain. Que é mais uma das peças dessa rede invisível de indícios que faz acreditar que não se está sozinho no mundo, e que a humanidade lá fora talvez não seja tão diferente de você aí dentro. Uma crença algo mágica que é o que me faz escrever isso agora, que aliás talvez seja a razão de eu chegar a escrever qualquer coisa na vida. E que explica porque estar aqui do outro lado do mundo, espremido em meio a um mar de rostos loiros e desconhecidos, esperando Neil Young entrar no palco, é apenas mais uma dessas inesgotáveis formas de voltar pra casa.
3 comentários:
Awesome, Olavo.
Vera tem toda a razão: awesome!
Taí um show que não quero morrer sem ver. Ou não quero que ele morra sem que eu possa antes vê-lo no palco.
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