quarta-feira, março 01, 2006

primeiro de março


e se fevereiro não morresse?
e se ao acordar só se sentisse uma persistência esquisita
(não se morre sem deixar marcas)
sujeira nas ruas, michês desorientados, mendigos sem braço
as grades fechadas dos shows de striptease, a câimbra, a dor do lado esquerdo da testa, a
congestão no nariz
a desordem no quarto, as roupas no chão, a pilha de moedas de cinco centavos em cima da mesa
os restos de samba em reprise na televisão do vizinho
e a mesma porra de insuficiência correndo nas entranhas
só um pouco mais aberta, jorrando mais livre, e quase nada mais cansada
a fome saciada em espasmos, mordidas sôfregas de pé no balcão
insuficientes
e se ao sair na rua fevereiro ainda te olhasse na cara
rindo alto por cima das cortinas fechadas dos prédios
e ao invés das cinzas viesse só um outro dia de sol atordoante
esquartejando a persiana e te impedindo de dormir
nesse lastro de tempo em que ainda é cedo pra madrugar
fevereiro passa, te atropela e vai embora
e no outro dia a vida segue estourando nos tímpanos e nas veias sem descanso
a falta ainda escorre pelas axilas
o calor continua atroz
alguém disse que março tem águas
eu não espero














(Rio, 4ª feira de cinzas, respondendo canhestro a um poema do Ferreira Gullar que uma amiga minha catou em algum canto esses dias)


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