quarta-feira, feriado de 7 de setembro no Rio de Janeiro. Um desses raros e preciosos dias de sol de inverno em que não faz calor demais, no qual se poderia ficar a tarde toda a esmo. Mas não, o dever me chama: tenho um debate na Bienal do Livro e tomo o caminho do Riocentro ao meio-dia e meio. Depois dos quarenta e cinco minutos de praxe pra chegar na Barra, essa província extra-muros da Flórida, chego na altura do autódromo e me vem a primeira surpresa.
trânsito. Bestial. Ameaçador. Completamente fora de hora e de lugar. Como se houvesse por ali um um jogo de futebol, um show de rock, uma missa evangélica. Mas não. O que havia, pasmem, era a Bienal do Livro. Não entendo a princípio. Achei que, tendo sido chamado pela Secretaria da Cultura pra um debate com autores estreantes em pleno feriado, eu certamente estaria sozinho com eles – quem iria me assistir naquele fim de mundo, afinal?
doce ilusão.
depois de meia hora quase parado, esperando pra entrar no estacionamento (pago, pelo módico preço de 15 reais), adentro os insalubres pavilhões do Riocentro pra encontrar uma horda enfurecida de famílias, casais, adolescentes, crianças, donas de casa, basicamente toda a cornucópica diversidade da espécie. E enquanto eu tento me orientar, o próximo choque vem na colada: eu olho pra frente e vejo a considerável fila que se forma em direção a um conjunto de guichês que diz “bilheteria”.
sim. Essas pessoas pagam ingresso pra entrar.
ainda meio embasbacado e desorientado, sou encontrado e levado pelo cortês rapaz que me escolta até o estande da SEC, com um convite nas mãos. Sento, espero, olho em volta, falo uma meia dúzia de coisas. E o debate corre tranquilo, poderia dizer mesmo que agradável. Mas é a única ilha tranquila em um tarde de estupor. Quando o evento termina, penso em propor às minhas companhias a ideia de ir embora instantaneamente. Mas não, não faria sentido. Depois de uma hora e meia de viagem, eu deveria pelo menos me aventurar a conhecer alguns dos níveis do inferno. Então pega a minha mão, Virgílio, segura, Berenice. Nós vamos bater.
e confesso que gostaria de dizer que nada mais me lembro. Mas algumas impressões são inapagáveis. Estandes altos como castelos e outdoors coloridos, que não consigo entender como são pagos em um país que quase não lê. Multidões em fúria e braços estendidos segurando câmeras ao redor da mesa em que o Padre Marcelo autografava seu novo livro, das onze da manhã às nove da noite. Crianças atiradas pelo chão, exaustas e talvez inconscientes. Um banheiro feminino com umas sessenta mulheres na fila. E mesmo depois de sair, ainda havia centenas de pessoas na fila do ônibus pra ir prum tal terminal de Alvorada, seja lá onde isso for, pra pegar um segundo ônibus pra casa. Não me lembro, porém, de caras felizes – com exceção de um grupo de crianças do jardim da infância ouvindo a história da Cinderela.
mas mais do que a multidão, a impossibilidade de comprar comida, o tempo que já tinha nublado quando saí, os quinze reais de estacionamento, ou a outra hora e meia de trânsito pra voltar pra Zona Sul, o desconforto maior que me fica é outro. É a pergunta inconveniente que se impõe, me perpassa, a dúvida que me devora. O que diabos essa gente toda estava fazendo lá?
porque convenhamos, isso não pode ter nada a ver com gosto pela leitura. Se essa gente toda realmente gostasse de ler, teria pego um livro (comprado na livraria, na banca de revistas, na internet, ou em tantos outros lugares possíveis) e ido ler na praia, no parque, na laje de casa, onde quer que fosse. E pronto. Parece fácil. E como leitor, eu jamais pensaria em outra opção literária pra um feriado ensolarado.
mas não. De alguma forma, alguém conseguiu vender pra essa gente a mentira de que literatura era algo muito importante pra ser tão simples. Algo que precisa de estandes enormes, multidões, grandes nomes, ingressos e estacionamento pago. Que de tão importante só caberia num espaço tão grande (e horroroso) quanto o Riocentro. E criar a ideia de que se você vier se aglomerar no meio da multidão, pagar os dez reais de ingresso, os quinze de estacionamento e comprar mais meia dúzia de livros, só então talvez você consiga se aproximar um pouco mais desse castelo kafkiano, desse mundo mágico acessível aos iniciados, que fará você e seus filhos ficarem mais inteligentes, serem mais respeitados e crescerem na vida.
gente, eu sinto dizer. Mas literatura não é isso. Aliás, eu diria que é o oposto diamétrico disso. É algo tranquilo e íntimo, que só precisa de um punhado de palavras escritas. E de um canto mais ou menos silencioso. E mil desculpas a vocês que ficaram três horas na fila do ônibus, mas vocês não vão encontrar isso num shopping. E nem em um centro de convenções lotado. E como eu bem sei que a culpa não é de vocês, e que vocês são meras vítimas de um grande embuste, tenho vontade sincera de esganar quem possa ter vendido essa mentira pra vocês.
e sim, vocês podem dizer que a Bienal tem ofertas ótimas, eventos legais, autores importantes, debates inteligentes. Tem mesmo. Mas isso tudo tem em outros lugares da cidade, do mundo, da internet, quase que todos os dias. Em lugares muito mais aprazíveis, e sempre quase sem público. Então nada disso me parece uma boa desculpa, e eu sigo sem entender como um atentado ao bom senso desses possa colar pra uma quantidade tão grande de pessoas.
mas cola. E essa é a parte triste. Porque no fundo a Bienal é sintomática de uma espécie humana que aprendeu a estabelecer com a cultura apenas mais uma relação de consumo, que em última análise é a que existe em seu repertório. Seja ele pago, como o ingresso ou o livro, ou grátis, como a foto e o autógrafo do Padre Marcelo. E o que pareceria um imenso triunfo da literatura a um observador desavisado, multidões reunidas em torno da leitura, em um país tido como iletrado, aos meus olhos parece só uma piada de mau gosto. Um sombrio enterro da palavra, atropelada pelo mercado, pela boiada, pelo ruído, pela Barra da Tijuca. E desprovida daquilo que ela tinha de mais importante: o silêncio, aquele precioso silêncio que sabia se formar em volta dela.
5 comentários:
hj eu ouvi o Peninha falando que os militares foram tão incompetentes que não conseguiram nem explodir o Riocentro (ref. Atentado do Riocentro). Talvez o Riocentro seja a verdadeira bomba. Passarei o findi lá, mando lembranças.
huahuahuahuah.
cara, boa sorte. E manda um abraço pros amigos que estiverem ir lá. Adoraria ir ver a galera do debate de amanhã (Nesky, Scott, Simone), mas simplesmente não tenho forças pra encarar mais três horas de trânsito, estacionamento, bilheteria e essas coisas mais. Depois do fim-de-semana, acho que tu vai entender.
Uma das melhores definições de literatura que já li a sua :)
thanks for sharing it.
Literatura, sem dúvida, é algo para ser praticado na solidão da alma de cada um, e não em um shoping lotado.
Acho que é verdade que dizem que muitas pessoas criam seu próprio Inferno.
Valeu, Olavo.
Postar um comentário