escrever é voltar pra casa. Deixar pra trás a balbúrdia dos aeroportos, dos trens lotados, do tráfego insano de sedutoras metrópoles que partirão você em pedaços. Virar as costas para a violência e a euforia da realidade, para a força irreprimível do que não se exprime, para o raro talento do momento presente em atropelar o que um dia você chamou de identidade. E depois de atravessado pela claridade do mundo, exausto, deixar o corpo arrefecer no chão frio do chuveiro, ainda sem luz. Sem nada além da imagem em negativo na retina e as marcas vermelhas nas costas pra tentar entender o que ainda resta do lado de dentro, com o corpo liberto do sal pela água que corre. No dia seguinte, um pouco mais livre do cansaço, você revelará as fotos (armazenadas em película, sempre), e redescobrirá o que acaba de atravessar, não na sua inteireza inapreensível, mas em uma moldura particular e imóvel que, pendurada na parede, aos poucos substituirá o real por algo passível de compreensão. Uma galeria de imagens com início, meio e fim que você possa mostrar aos seus amigos depois do jantar. Um simulacro que não será mais do que uma sombra frente à luz que o originou, mas lhe dará o esqueleto necessário para que as palavras se juntem, para que a intensidade que isolava se transforme na narrativa que unifica as contas-entes de você mesmo. E com isso fará um pouco mais fácil a transição das infinitas facetas do mundo para o pouco que você é capaz de guardar no corpo, na memória, na página. Uma página em branco que, se parecer pobre, não o terá iludido, pois será ela que por fim lhe dará a viagem. Concedendo forma e limite ao que era amorfo e infinito, como forma de apreensão de uma ínfima parte da realidade, aquela que você é capaz de contar. Fazendo-o enfim livre para dar as costas ao infinito e encarar a casa redescoberta, o íntimo pedaço do universo que você é capaz de chamar de seu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário