segunda-feira, janeiro 28, 2013

mil bichos pra se esquecer

quando eu era pequeno meu brinquedo preferido era um fichário gigante chamado Mil Bichos. Umas figurinhas grandes com fotos de bichos na frente e informações atrás, feitas pela editora Abril. Hoje valem mil reais no Mercado Livre.
mas o que eu amava nos Mil Bichos não era tanto a foto nem a informação. E sim o fato deles serem classificáveis. Cada bicho tinha uma classificação zoológica, uma classificação ecológica e uma classificação biogeográfica. E você podia classificar eles em pilhas por qualquer um dos critérios.
não conseguiria contar quantas vezes classifiquei, desclassifiquei e reclassifiquei as mil e poucas fichas do brinquedo. O que diz alguma coisa sobre a minha natureza – só uma criança espiroqueadamente neurótica mantém um rito de classificação como passatempo favorito por vários anos. As outras estão ocupadas dando boladas nos vidros do vizinho.
mas tudo isso é um preâmbulo pra contar que esses dias eu parei pra olhar fotos no computador.
minha intenção inicial, além de fazer alguma coisa com o excesso de imagens acumuladas no HD, era fazer uma árvore. Por razões meio arbitrárias e despretensiosas, eu sempre gostei de fotografar galhos e folhas, e sabia que tinha incontáveis dessas fotos guardadas. E embestei que dava pra imprimir um monte delas e encaixá-las como uma árvore única, fazendo uma espécie de árvore de todas as árvores a partir dos detalhes de várias.
então criei uma pasta no computador chamada “árvore mãe” e fui abrindo pastas de fotos atrás de árvores, copiando e colando tudo o que parecia vegetal. Como sempre ocorre, porém, abrir pastas em ordem cronológica reversa rapidamente virou um exercício de revisionismo. Até porque, pra minha natureza Mil Bichos, olhar pra trás nunca é mera nostalgia. E sim uma tentativa de costurar fios, achar relações, traçar narrativas, ordenar fatos. Sou assustadoramente bom em ordenar fatos e datar eventos. Desafio qualquer um que eu conheça nesse quesito.
e como essa gente mala das artes plásticas conseguiu incutir na nossa cabeça que por trás de uma obra tem que haver um conceito, minha árvore logo foi deixando de ser só uma árvore. E se tornando numa maneira de dar continuidade a tempos e lugares desconexos. De juntar as várias árvores numa só, e ao fazê-lo ligar os pontos da minha geografia fragmentada e descontínua dos últimos três anos. Um esforço de dissecção, classificação e arqueologia. Uma tentativa, como quase tudo o que eu escrevo, de criar uma narrativa que dê conta de tudo o que se passou.
então fui cortando e colando folhas e galhos, e isso foi indo, e foi indo. Era foto pra caralho. Mas por menos que eu parasse pra olhar, me limitando a reconhecer superficialmente os lugares e tempos, só o copiar e colar de galhos e folhas se revelou uma tarefa hercúlea. Ao chegar ali pelo fim de dois mil e nove, quando me mudei pro Rio, já tava completamente exausto. E não tinha nem começado a fazer sentido de alguma coisa a mais do que a mera aparência das árvores.
e aí naquele momento tive um dos poucos insights que realmente prestaram na minha vida. Pode parecer óbvio e piegas pra quem ouve de fora, mas naquele momento bateu como poucas vezes a verdade óbvia, mas difícil de encarar, de que não dá pra dar conta do tempo. Ou do mundo, ou da existência. Que a maioria dos momentos e imagens são esquecidos, que tem informação demais pra entrar na narrativa. Que a palavra é lenta demais pra competir com a vida passando. E que não importa o esforço que se faça, o destino final da memória, bem como o da matéria, é se perder na desordem.
o que não significa que não haja fotos legais lá no meio, ou acontecimentos que valham a pena. Mas eles são mais legais enquanto imagens e momentos do que como fios condutores de qualquer coisa. E talvez a melhor, ou a única maneira de aproveitá-los seja tomá-los como tal. Imagens soltas e vagamente conectadas, com a mesma textura lógica de um sonho. Algo que parece ter um sentido enquanto você rola na cama. Mas pro qual toda interpretação subsequente será uma história inventada ao acordar, insuficiente pra apreender a essência efêmera e incompreensível do que já se perdeu.
e toda tentativa de estabelecer uma linha e interpretar o passado, assim como o sonho, será sempre uma narrativa a posteriori, com muito pouco a dizer sobre o que aconteceu de verdade. Não mais do que uma história inventada pra dar conta de um mundo inapreensível, assim como deuses são inventados pra explicar trovões. Que no fundo não serve pra entender o que fica pra trás, e que no máximo pode servir pra apontar um caminho qualquer pra seguir adiante. E isso se a gente der sorte.
por mais que eu possa falar dela, no fundo uma árvore é só uma árvore.
e é curioso que eu pare pra revisar e postar o que está escrito aí em cima em um fim de tarde saturado até os ouvidos em palavras e mais palavras sobre os mortos de Santa Maria. Reportagens no jornal, chamadas na tevê, conversas de boteco e postagens do Facebook em que todo mundo parece ter algo a dizer. Sobre o absurdo da falta de fiscalização, a irresponsabilidade da banda, os amigos que fulano perdeu, o choro da Dilma ou qualquer coisa do gênero. E ao me ver cercado por esse excesso de palavras, a única coisa que me ocorre é que a loucura do mundo é um pouco a mesma que a minha. Porque achar que alguma dessas narrativas vá ser suficiente pra fazer algum sentido do que se passou é um pouco como achar que uma árvore vá ligar os pontos da vida. E assim como não há árvore que faça sentido do tempo, também não há palavra que faça sentido da dor.
da minha parte, não tenho nada a dizer sobre portas de emergência, sinalizadores ou alvarás de discotecas. Só tenho a sensação de uma tarde cinza, de uma tristeza no ar e de um excesso de palavras. Se tivesse perdido alguém próximo, gostaria de estar perto dos que ficam pra dar um abraço. Não sendo o caso, o que tenho a oferecer é o meu silêncio. E um desejo de sorte nas palavras que cada um escolha pra criar uma história que ajude a seguir em frente. Até porque, por acidente ou não, eu também acabo de escolher as minhas.

6 comentários:

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