terça-feira, julho 25, 2006

um post longo e uma vida curta


sei não, mas acho que a revolução digital finalmente tem chegado no meu estômago. Talvez sejam só as circunstâncias que fazem o assunto mais presente. Mas a minha impressão é que mais e mais a minha perspectiva de vida tem sido cada vez moldada pelo ritmo absurdamente rápido do mundo à minha volta, em que os prazos de validade dos sonhos expiram cada vez mais rápido. Mas deixa eu começar do começo.
Até um tempo atrás eu tinha o meu discman. Ele era talvez o meu objeto mais querido, a ponto de uma vez há um pouco mais de cinco anos eu ter escrito um texto pra mim mesmo chamado “o discman e o mundo”. Ele começava, ingênua e pretensiosamente como convém a um guri de vinte anos, assim:

“Sou um fruto da geração CD, e isso pode parecer vago, mas na verdade é bem mais específico do que parece. Sou novo demais pra ter qualquer nostalgia em relação a vinil. Não que não os tenha conhecido e até ouvido, mas na minha memória LPs estão inevitavelmente guardados num armário. Do meu pai. Por outro lado, sou apaixonado demais pelos pequenos discos prateados em suas caixinhas tipo jewel box (como dizem acertadamente os americanos pra denominar o compartimento de um item tão precioso) pra conseguir aceitar a invasão iminente da música digitalizada em MP3 sem torcer o nariz.”

Rárárá. Ou, como se diria no MSN, huahuahuahuahuah. Naturalmente, durou um pouco mais de um ano até que eu deixasse de comprar CDs pro resto da vida, sem sentir nenhuma falta. E um pouco mais de quatro até que eu abandonasse eles completamente pra quem queira vir pegar aqui em casa.
E mais do que isso, desde então eu dou e continuo dando o testemunho vivo de que o Napster mudou a minha vida. Precisamente por ter feito a minha coleção de CDs que eu achava tão preciosa (eu era daqueles caras que guardava discos em estantezinhas, classificados em ordem alfabética) se tornar um troço absolutamente sem sentido de existir. E isso não foi ruim. Pelo contrário, isso sinceramente incorporou na minha cabeça o conceito de que acumular coisas era um troço meio sem nexo. Pelo simples fato de me dar conta de que maioria das coisas, incluindo toda a música do universo, estava disponível quando eu precisasse. Às vezes pagando, às vezes de graça. Mas que eu podia esperar precisar. Isso me fez, entre outras coisas, abandonar a minha biblioteca na casa da minha mãe, começar a passar livros e discos adiante quando parecia a coisa certa a fazer, ridicularizar de vez a idéia de comprar artesanato em viagem, me despreocupar em arrumar o meu quarto e ter a impressão de que eu preciso de bem menos dinheiro do que antes pra viver bem. Tudo isso hoje em dia me faz um cara bem mais feliz, e eu sou infinitamente grato à pirataria pro resto da vida por isso.
Mas vá lá, isso já anda mais ou menos incorporado há horas. Construir ou acumular coisas sólidas na modernidade líquida não faz sentido porque a validade delas expira antes que a gente consiga terminar. Parece óbvio. O novo é que essa mesma mentalidade agora parece estar lentamente se incorporando no plano das idéias. Parando pra pensar, eu tenho a impressão de que uns tempos pra cá escrever um livro, ou simplesmente o ritual de sentar depois do temporal pra tentar colocar as idéias no lugar e fazer um sentido das coisas parece tão fútil quanto organizar uma estante de CDs. Pra começar, porque tenho sérias dúvidas se alguém ainda vai estar lendo livros de papel daqui a 20 anos. Segundo, porque tenho sérias dúvidas se a noção de “livro” ou de autoria como ela existe hoje vai existir daqui a 50 anos. Terceiro, porque parece reproduzir cultura dum jeito moribundo, e tomar o lado do establishment ao invés do lado da revolução parece um papel deplorável pra qualquer artista. E por último, naturalmente, porque tenho a impressão que qualquer idéia ou projeto que leve algum tempo pra desenvolver pode ter perdido completamente o sentido no momento em que esse tempo tenha passado.
Isso me lembra com uma conversa de bar com o Gilson, meu parceiro de cinema, em que eu perguntei, pela milésima vez, porque raios fazer filmes pra essa gente que faz cinema como profissão tinha que ser tão caro e profissional e em 35 mm, e porque raios eles não pegavam uma câmera digital e uma equipe enxuta e faziam tudo low budget. E de tanto insistir, eu consegui arrancar um certo “pois é, eu estou começando a pensar um pouco assim” (cineasta profissional não se entrega tão fácil). E aí me deu uma explicação a respeito, falando de terceiros, mas de um jeito que pelo menos parecia um tanto quanto confessional. Que dizia algo tipo “velho, isso é complicado. Mas às vezes tu tem que pensar que o cara estuda e trabalha um tempão, dez ou quinze anos, sonhando com o dia que vai fazer um longa-metragem seguindo aquela tradição de sempre, 35 mm, várias semanas de filmagem, um troço tipo “A Noite Americana”. E aí quando ele finalmente chega no momento da vida em que isso passa a estar no alcance dele, as regras mudaram, e o tempo desse sonho meio que passou. É foda...”
(Obs: não sei se ele repetiria essa história sem a taça de vinho na frente, e também não sei se as palavras foram exatamente essas. Mas esse é o jeito com que eu prefiro lembrar da história, e eu admiro o cara um monte por ter contado ela do jeito que eu me lembro. Mesmo que ele não tenha dito nada disso).
Em todo caso, a questão é que acho que a minha sensação dos últimos tempos, no fim das contas, passa um pouco por aí. Não sei se os meus projetos de longo prazo não andam perdendo um sentido num mundo que muda tão rápido. Livros? Estranho como meio de permanência, no mínimo. Achar uma editora? Huahuahuahuahuah. Ciência? É como ser uma formiga no meio de milhares de pós-docs chineses trabalhando sessenta horas por dia pelo mundo afora.. Em todo caso, nada parece destinado a alguma forma de permanência. E eu não estou falando da imortalidade afora: nada que demore muito pra alcançar parece dar muita garantia de que vá continuar fazendo sentido quando eu chegar lá.
E como o mundo é quem dita todos os movimentos do jogo, talvez a única arte que ainda faça sentido de fato seja aprender a reagir. Talvez o único jeito de não ser ultrapassado seja afundar de vez na dispersão e tentar deixar de fazer um sentido estático das coisas (aliás, não deve ser coincidência que o meu único livro se chama “Estática”), e tomar o movimento e a efemeridade como as únicas realidades com que a gente pode de fato contar. E esquecer a história toda de fazer sentido, pois os únicos sentidos que continuarão a fazer sentido são os feitos na hora, em breves conversas de bar ou em postagens soltas, aqueles que não se importarem em morrer logo após de nascerem. Na prática, talvez a literatura já nem exista mais. O que existe é um mar de informação se atualizando todos os dias, e se tornando cada vez mais uma coisa só. E como o mar é muito maior do que o que cabe nas nossas veias, a gente nunca vai apreendê-lo. O máximo que a gente pode fazer é tentar flutuar e seguir sobrevivendo dentro dele.
E o mais engraçado de tudo é que nada disso chega a me fazer sofrer. No máximo talvez me cause uma certa desorientação, mas que em todo caso é quase despreocupada. E talvez seja justamente essa tranqüilidade a prova última de que eu ande incorporando de fato a dispersão como inerente à vida. E o que então resta fazer com todo esse barulho, no momento em que pensar ou escrever parece não dar conta do que se tem a dizer na velocidade adequada? Sei lá, acho que só o tempo dirá. E provavelmente vai acabar se desdizendo logo depois.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom. Não sei como ninguém comentou...