domingo, fevereiro 24, 2008

cinco minutos depois


(isso foi originalmente um e-mail mandado pra alguns seletos há quatro anos. Não sou muito de postar textos antigos. Mas achei que talvez servisse de contraponto pro texto acima)

talvez já ande tarde pra comentar acontecimentos do início da semana passada. Por outro lado, talvez falar das coisas com atraso nunca tenha sido tão chique. O Grammy passou na segunda-feira pra algum número irrelevante de milhões ou bilhões de telespectadores com cinco minutos de atraso em relação ao espetáculo em si, num regime de quase ao vivo. Parece que o velho Oscar pensa em fazer o mesmo. Tudo isso, aparentemente, por causa do seio quase à mostra de Janet Jackson que escandalizou um país inteiro (e um universo à parte) durante o show de intervalo do Superbowl XXXqualquer coisa. Um dia depois, “Janet Jackson” era a palavra mais procurada no Google, abrindo links para milhares de sites de pornografia, e a CBS contava as reclamações em centenas de milhares. Isso que tinha um negócio prateado na frente do mamilo. Parece piada, mas é sério.

e a partir daí se geraram mais milhares de linhas de texto comentando o grau em que chegou o moralismo besta nos Estados Unidos. Tantas, aliás, que acho que não vale a pena entrar no mérito, porque seria como chutar um cadáver. Fácil, sem risco, e completamente inútil, porque o alvo é forte demais pra sentir coisa alguma. Não que deixe de ser completamente apavorante saber que o atraso de cinco minutos nas transmissões ao vivo coexiste com o maior arsenal atômico do planeta. Parando pra pensar, eles poderiam destruir o mundo em quatro minutos e ninguém nem ia ficar sabendo, porque daria tempo pra editar tudo. Mas isso tudo já foi dito, e se alguém duvidar da dimensão da coisa que entre num site de “organizações de valores tradicionais” na internet. Eu, particularmente, tenho mais a fazer.

mas parece haver um outro aspecto da coisa que talvez tenha passado desapercebido em meio ao absurdo da situação. Porque deixando de lado o incidente inicial, e a discussão a respeito do grau de escândalo que um quase-seio pode causar, o fato é que o resultado é o cancelamento de transmissões ao vivo pela simples razão de que alguma coisa pode acontecer. O que, de fato, faz qualquer um tremer de medo: como os americanos parecem ter acabado de descobrir, numa cerimônia de auditório dessas cheias de celebridades qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa. Imaginem os possíveis riscos. Palavrões, arrotos, ofensas ao presidente, beliscões em partes íntimas. Até sexo, talvez. Parando pra pensar, é absurdo que alguém possa conviver com tal ameaça. Se querem saber a minha opinião, deviam simplesmente cancelar de vez todas as transmissões ao vivo. E tirar a TV da tomada, por via das dúvidas, porque sempre pode acontecer de alguém sentar no controle remoto.

mas isso não é nada ainda. Pior vai ser quando se derem conta de que um absurdo muito maior é que o mundo também acontece ao vivo. E se a gente não consegue nem sequer assistir o Oscar ao vivo, como raios vai poder sair na rua, sabendo que a qualquer momento qualquer coisa pode acontecer? Como deixar que nossas crianças vivam num mundo onde alguém pode tirar a roupa a qualquer minuto. Ou ter um ataque epiléptico. Ou atirar em cinco pessoas e depois se suicidar. Ou jogar um avião em cima de um prédio. Ou falar palavras obscenas. Ou mostrar um seio. Ou quase. Não dá. Não dá, não dá e não dá. E uma vez que se derem conta disso, é só questão de tempo até que as autoridades instituam que o mundo aconteça com um atraso obrigatório de cinco minutos. Porque é o único jeito de salvar a América.

alguém devia passar uma lei obrigando todo americano a vir pro Brasil em algum ponto da vida. As vantagens seriam inúmeras. Seria uma maravilha pra nossa indústria do turismo. Ia fornecer os nossos aeroportos com a maior coleção de impressões digitais do mundo. E ia instalar um pouco de maldade naquele bando de cabeças supostamente tão puras que têm medo dos seios da Janet Jackson. E a questão não é assistir à mulata Globeleza, e sim forçá-los a sair do hotel e caminhar no Rio de Janeiro, nem que seja em uma Copacabana já tomada de estrangeiros, e enxergar a pirâmide social brasileira inteira, os corpos malhados se expondo em busca de sexo, os ambulantes empurrando carrinhos de 5 bolas de sorvete a um real, os turistas com as prostitutas de todas as idades, o assalto ocasional, o mar verde quebrando em cima da praia e a ex-favela e atual comunidade do Cantagalo pendendo por cima dos hotéis de luxo.

e que fique bem claro que a idéia não é chocar ninguém. E nem querer impressioná-los com a violência da nossa realidade. É simplesmente fazer enxergar que a violência existe. E ponto. Até porque no fim das contas talvez não seja tão mais violento viver com as armas do tráfico apontadas contra a cabeça do que viver num confortável subúrbio no meio-oeste americano. A nossa violência é apenas um pouco mais próxima, um pouco mais escarrada, mas a verdade é que existir é intensamente violento em qualquer circunstância. Estar vivo em qualquer lugar do mundo é estar sujeito ao sol, à paixão, ao câncer, aos acidentes, aos fetiches, aos filhos mortos, à tentação. E ao destino, que aliás acaba não variando nunca. E a impossibilidade de ver o pôr-do-sol em Ipanema sem enxergar as luzes do Vidigal é apenas dar-se conta do irremediável. De que em algum lugar existe a maldade, o sofrimento, a pobreza, a luta, a morte. E que pelo menos a última acaba nos alcançando. E é claro que a gente se queixa de viver aqui, e tem todo o direito de se queixar. Mas no meio do caos, sintamo-nos ao menos um pouco privilegiados por poder saber que ele existe simplesmente saindo na rua. Até porque se a gente dependesse da TV, nesses tempos de cinco minutos de atraso, ia ser bem complicado.

pior que isso talvez seja saber que a história define seu curso num lugar onde pra um monte de gente o contato mais radical (e quase insuportável, pra alguns) com o resto do universo acontece no intervalo do Superbowl. E as coisas começam a ficar realmente estranhas quando se enxerga o mundo em 29 polegadas. Talvez porque enquanto as coisas continuarem acontecendo só pela TV, cai arranha-céu ali, morre soldado ali, toda essa bobagem que entra pela antena acaba se misturando e se esquecendo, e o título de Portador do Mal Supremo passa de Osama Bin Laden ao Grande Seio Semidesnudo quase sem se notar, conforme o que aparece no vídeo no momento. E entre uma bobagem e outra se decide o destino do mundo, e a gente a alguns milhares de quilômetros pouco pode fazer. Exceto assistir, e pensar que às vezes um pouco de maldade deve lhes fazer falta. Quem sabe se a gente exportasse o Comando Vermelho? Com cinco minutos de atraso, talvez eles não se importem em aceitar...

(escrito numa madrugada há quatro anos atrás, logo após voltar do Rio de Janeiro)

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