minha última viagem de ônibus no México durou quatro horas. Suficiente pra dois filmes dublados de Hollywood, provavelmente em DVDs piratas comprados a cinco pesos. O primeiro é uma clássica (e péssima) comédia romântico-dramática de sonho americano, em que um imigrante mexicano viaja pra LA e começa vendendo tacos pra no fim das contas formar uma banda de boleros e ficar famoso. O filme começa com uma narração em off que diz algo como “nascí en un pueblo en una tierra em que la gente por veces no sabe se está despierta o soñando”, com umas casas coloridas e um pessoal tocando música. Me lembra vagamente o que eu vi no pavilhão do México no Epcot Center quando era pequeno.
o filme seguinte parece mais chique, ainda que com muito menos pé e/ou cabeça. Tem o Nicolas Cage e o Harvey Keitel no elenco, e trata de um bando de arqueólogos que desvendam uma teoria da conspiração que gira em torno do assassinato de Abraham Lincoln, pra no fim das contas descobrir um uma cidade Olmeca cheia de ouro, ou algo assim, esquizofrenicamente perdida embaixo do monte Rushmore (afinal, o México não poderia ter nada que os Estados Unidos não sejam capaz de ter).
antes dos filmes, a TV desse ônibus (e de todos os outros) também passa um vídeo turístico mostrando standards mexicanos como Teotihuacán, Cancún, tacos com queijo e Acapulco, que acaba com um slogan tipicamente melodramático que diz “así que digalo a todos: “Vive, México!””, com uma voz tipo a do Cid Moreira narrando o evangelho.
eu, meio desinteressado dos filmes todos, vou espiando eles de cinco em cinco minutos (mais do que suficiente pra complexidade dos mesmos) enquanto escuto no iPod um troço chamado “March of the Zapotec”, do Beirut (um pirralho novaiorquino fissurado em música da Europa Oriental), que nesse EP em particular parece tentar soar meio mexicano, sem muito sucesso (pra mim, continua emanando diretamente da Bósnia, mesmo que eu nunca tenha estado lá).
e o que os elementos acima tem em comum? Bem, (a) todos eles falam do México. (b) Todos eles são feitos no exterior (com a exceção do filminho turístico, que é pra gringo ver de qualquer maneira). E (c) todos parecem evocar um lugar que sinceramente tem muito pouco a ver com o que se vê da janela. Que consiste basicamente, pelo menos nesse trajeto entre Puebla e Oaxaca, em montes de montanhas áridas com umas casinhas meio pobres e bares de beira de estrada no meio do caminho.
minha pergunta é: será que essa gente realmente acredita na sua própria imagem do jeito que lhe é vendida pelos outros?
não tenho certeza, mas não duvido que às vezes sim. Afinal, deve ser meio difícil manter uma autoimagem com uma superpotência olhando pra ti do outro lado da cerca como um grande mercado a ser conquistado. E sabendo que a maneira mais fácil de fazê-lo é determinar o que as pessoas devem querer e, por tabela, devem ser. E então dá-lhe exportar o estereótipo latino pra própria América latina através de ídolos processados em Miami tipo Ricky Martin ou Alejandro Sanz. Pra não falar em transmissões diárias do “Latin American Idol” na TV y otras cositas del género.
e como o México também tem que ser vendido pros americanos, afinal, também dá-lhe guias turísticos alardeando civilizações pré-colombianas, pirâmides a serem pisoteadas por turistas, praias paradisíacas, locas noches de amor, camisetas dizendo “one tequila, two tequila, three tequila, floor”. Ou, pros mais aculturados, socialmente culpados, ou simplesmente descolados carregando seus Lonely Planets, românticas e sofridas comunidades indígenas maias em Chiapas ou artesãos dedicados em vilas zapotecas.
e estará algum desses estereótipos certos? Suponho que sim. Na verdade acho que se uma conspiração coletiva quer determinar que um lugar existe, certamente ele acaba existindo. Com certeza é a impressão que eu e qualquer outro de fora acabamos tendo: o mundo lá fora de fato se parece com o guia turístico, pelo menos na maior parte das vezes. Mas se era aquilo que fomos condicionados a ver (e todo mundo parece estar aqui para ver as mesmas coisas, pois as rotas de viagem são sempre as que estão no guia), como raios poderia ser diferente?
mas ao longo do caminho eu vejo os rostos da gente ao meu redor, e tenho a impressão de que eles olham tudo isso apenas como mais um filme babaca de Hollywood. Que assistem passivamente, talvez não se reconhecendo de verdade. E provavelmente não dando a mínima pra essa coisa de herança asteca, calendário maia, e talvez muito menos com o exército nacional zapatista a mil quilômetros de distância. Que vivem a mesma vida pacata e alheia ao que diz o lonely planet, tão desprovida de pitoresquice quanto qualquer cidadezinha do nordeste do Brasil. E acompanha, a seleção nacional nas eliminatórias da copa, as novelas na televisão, a luta livre na sexta de noite e os palhaços fazendo shows na praças em tardes de domingo. Geralmente com um sorriso no rosto, e com uma simplicidade desprovida de ironia, intelectualidade blasé ou malícia que frequentemente me espanta.
moral da história? Ainda é cedo pra dizer. Mas se alguém quiser conhecer a essência do México, fica a minha dica provisória. Esqueçam ensaios de Octavio Paz. Esqueçam o calendário maia. Esqueçam o guia turístico. Simplesmente cheguem mais cedo em casa, liguem no SBT, e torçam pra que ainda passe o seriado do Chaves (o original, com “s”, não o paspalho de boina vermelha que assumiu o nome no inconsciente coletivo). E se quiserem realmente ir fundo, dêem seguimento à imersão assistindo Marisol, Chispita (ai minha anacronice...) ou seja lá que novela mexicana a Record possa estar passando.
e o mais importante de tudo, esqueçam definitivamente idéias idiotas como vir até aqui. O Chaves é muito mais México do que qualquer coisa que esse lugar possa oferecer.
2 comentários:
Arrependido?!
Guess so.
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