segunda-feira, novembro 12, 2007

comam arroz e banhem-se no ganges, mas deixem o resto da humanidade em paz!


(o coelhinho vai bem, já a criança...)
eu achei que a situação era complicada quando li que o prefeito César Maia tinha sancionado uma lei que efetivamente proibia a experimentação animal no estado do Rio de Janeiro (meio por engano, é verdade, mas isso não nega o fato de que o cara que tá segurando o coelhinho redigiu aquele texto com essa intenção). Mas o debate que tem se seguido mostra que a situação é, pelo menos em alguns casos, muito mais escabrosa do que parecia a princípio. Com todo o respeito às pessoas razoáveis e coerentes que defendem os direitos dos animais e a regulamentação da pesquisa em cobaias (que não são poucas, aliás), o grau de ignorância e obscurantismo de boa parte dessa gente é chocante.
abaixo segue um ponto de vista (reproduzido com orgulho, diga-se de passagem, no site do democratas - vulgo o pêefeéle com vergonha do próprio nome - partido da anta que criou o tal projeto de lei) publicado no jornal mais importante do país por uma professora universitária. O descalabro é tamanho que eu fiz questão de comentar frase a frase. E estimulo todo mundo que se encontra igualmente perplexo a escrever pro tal deputado ou pra autora do estrupício reproduzido abaixo pra xingar, discordar educadamente ou contar alguns fatos básicos sobre a saúde no século XX que a maioria das pessoas aprendeu na quinta série. Ou ainda a escrever protestando pra reitoria da UFSC , que afinal é quem paga essa pessoa (com o nosso dinheiro, aliás) pra falar essas bobagens.
anyway, a situação só não é tão escabrosa porque eu tenho a convicção que esses radicais são a absoluta minoria, mesmo entre quem se preocupa com os direitos dos animais. O problema é que, como todo fanático, eles são muito mais vocais do que os moderados. Então façamos algum barulho. Ou pelo menos aproveitemos que o debate está aberto pra responder a altura. Se essas pessoas querem se curar com arroz e banhos no Rio Ganges, que o façam (ainda que aposto sem medo que a maioria delas preferirá a quimioterapia quando o problema for com elas). Mas que deixem o resto da humanidade em paz. A maioria já decidiu e segue decidindo (ainda que silenciosamente) em favor da experimentação animal, por uma decisão de colocar as pessoas em primeiro lugar. E não tem nada de errado nisso, é apenas o jeito da maioria ver o mundo. Então, queridos fanáticos, se quiserem "fazer a sua parte" não usufruindo da ciência e recusando-se a utilizar a medicina moderna, go ahead. Mas deixem o resto da humanidade em paz pra se governar como bem entender.
anyway, lá vai o descalabro inteiro:

"AS INVESTIGAÇÕES científicas mais relevantes para a preservação da saúde e da vida humanas resultaram de estudos feitos com base na clínica, na observação e no mapeamento das doenças que mais incidem sobre a população humana ou de estudos voltados para a prevenção das doenças, não exclusivamente para o combate de seus sintomas.
(OK, a afirmativa que “a prevenção é mais importante do que o combate dos sintomas” pode até estar certa. Só que esquece que (a) estudos animais são obviamente importantes pra estratégias de prevenção primária e secundária (vide estudos de vacinas ou métodos diagnósticos) e (b) a oposição “prevenção vs. combate dos sintomas” é completamente esdrúxula. A importância de prevenir não diminui em nada a importância de saber remediar ou controlar os sintomas com a doença instalada. Não há nada de errado agir exclusivamente no combate dos sintomas quando o resto falha. Negar isso seria recusar analgésico pra paciente com câncer terminal, o que é uma idéia completamente sádica e vil)
"As descobertas científicas que mais contribuíram para prolongar a vida humana resultaram basicamente de estudos e observações clínicos, e não de testes feitos em animais vivos de outras espécies."
(sim, e os estudos clínicos se baseiam no quê, querida? Como essa pessoa acha que as pessoas desenvolvem não só as drogas a serem testada, mas toda a base de conhecimento de fisiologia, genética, bioquímica e patologia que permite construir modelos teóricos pra interpretar as observações clínicas de maneira que elas sirvam pra alguma coisa?)
Via de regra, estudos baseados no modelo animal vivo (vivissecção) servem apenas para desenvolver a habilidade dos cientistas na construção de modelos que terão de ser, mais tarde, redesenhados para a aplicação em estudos destinados à investigação de possíveis terapêuticas para doenças humanas.
(pra começar, não entendi lhufas dessa frase mal escrita. Mas me parece que jogar esse “desenvolver a habilidade” ali no meio parece uma tentativa de sugerir, falsamente, que os cientistas usam animais pra “treinar habilidades”, o que é absolutamente falso. Eles os usam pra construir conhecimento. Aliás, o próprio uso do termo “vivissecção” pelos “abolicionistas” da experimentação animal pra denominar experimentação animal é um erro de utilização da palavra (que a rigor significa “o ato de examinar internamente um ser enquanto ele ainda está propriamente vivo”, o que é o destino de uma porcentagem ínfima de cobaias sacrificadas no mundo – eu chutaria menos de 1%), que me parece querer evocar cientistas mutilando animais e confundir a questão (válida, a meu ver, pelo menos como debate) da necessidade da vivissecção para o ensino com a questão (completamente descabida, a meu ver) da necessidade da experimentação animal para a pesquisa científica e para a saúde humana)
Após todo esse esforço, as drogas não funcionam como prometido. Muitas delas são retiradas do mercado após constatada sua letalidade para humanos
(esse argumento é completamente idiota. A lógica aqui é (a) “a ciência utiliza animais”. (b) “a ciência tem fracassos e produz drogas que tem que ser retiradas do mercado”. Logo (c) “a culpa é da experimentação animal. Excuse me, qual é o sentido que isso faz? Pense um pouquinho, meu doce. Se a ciência já erra e produz drogas inefetivas e perigosas usando milhares de cobaias, imagine o cenário dantesco que se produziria se ela testasse elas direto em gente).
A ciência usa o dinheiro e investe o tempo de seus operadores se perdendo nos labirintos da vivissecção. Seu investimento nesse único método de pesquisa é diretamente proporcional ao seu fracasso em responder satisfatoriamente às questões às quais se propõe responder com a investigação.
(mesma lógica, mesma bobagem)
Enquanto gerações e gerações de jovens cientistas são transformadas em vivisseccionistas sob a imposição hegemônica de uma ideologia claramente fracassada, outras tantas gerações de jovens, bebês e adultos morrem a cada ano daquelas mesmas doenças que o cientista há mais de cinco ou seis décadas promete curar ao buscar em organismos de ratos e camundongos a resposta para males que afetam cada vez mais devastadoramente organismos de indivíduos humanos.
(de novo o mesmo argumento: (a)“a ciência tem fracassos”, logo (b) “ela não funciona e a culpa da experimentação animal”. De novo, se depois de décadas de pesquisa as pessoas continuam morrendo das mesmas doenças – ainda que geralmente menos – isso só quer dizer que a gente precisa do máximo de ferramentas possíveis)
A ciência vivisseccionista não tem feito nenhum progresso na busca da cura dos grandes males que produzem as doenças crônicas, dolorosas e letais mais comuns em organismos humanos: câncer, acidentes vasculares, diabetes, hipertensão, mal de Alzheimer, mal de Parkinson. Além do fracasso evidente de todas as drogas até hoje empregues para a "cura" dessas doenças, é preciso contabilizar o fracasso de outras inventadas a partir do modelo vivisseccionista para o tratamento das demais doenças que afligem os seres humanos, a exemplo da depressão e de outras formas de sofrimento psíquico
(me dêem licença pra ser um pouco sarcástico, mas isso é um completo atentado contra o bom senso, e um insulto blatante a milhões de cientistas bem-intencionados. Eu não vou citar exemplos de por que isso está errado porque me parece que não precisa, qualquer pessoa que tenha passado do jardim da infância consegue reconhecer o absurdo total das frases acima. Em todo caso, se alguma referência é necessária recomendo à autora que dê uma olhadinha em qualquer estatística de expectativa de vida ou mortalidade por doenças específicas de qualquer lugar do mundo desse século. Falar que a ciência não tem feito nenhum progresso na busca da cura das doenças mencionadas é um descalabro completo e total, e é simplesmente insultante pra humanidade em geral)
(notem que a autora insiste no conceito de “cura” de maneira a enganar o leitor: de fato, a maior parte das doenças citadas permanecem incuráveis (com a honrosa exceção do câncer, que vou discutir abaixo). No entanto, é completamente inegável que o controle, a mortalidade, a morbidade e o sofrimento associado a coisas como diabetes, hipertensão, doenças vasculares cerebrais e Parkinson foi imensamente afetado pela medicina moderna e pela farmacologia, em grande parte devido ao suporte de experimentos animais. O tratamento correto da diabetes faz a diferença entre décadas vividas com qualidade de vida semelhante a um indivíduo saudável e a cegueira, a amputação, a insuficiência renal e a morte precoce por um infarto. Dizer que a doença “não foi curada” pode até ser uma verdade relativa, mas tentar sugerir através daí que a vida dos diabéticos não foi vastamente melhorada pela ciência é um insulto a milhares de cientistas que pesquisam na área e a milhões de pessoas doentes que tem que ouvir uma estultície tamanha)
(ainda no parágrafo acima, gostaria de destacar que também sou um puta crítico da “invenção” (ou pelo menos da diagnostização de sintomas) por parte da psiquiatria moderna. Agora, puta que o pariu, o que diabos isso tem a ver com os pobres dos ratos. É o típico argumento de um observador tosco que coloca a ciência toda dentro dum saco plástico pra jogar dentro do rio)
Ao adotar o organismo de camundongos, ratos, cães, gatos, porcos, cavalos, aves e primatas não humanos como referência para a investigação, a ciência deixa de estudar e conhecer o organismo e o psiquismo dos seres da espécie humana, a destinatária de seus resultados.
(esse é o outro argumento freqüentemente usado que também é completamente idiota. É claro que seres humanos são diferentes de porcos e camundongos, qualquer criança retardada sabe disso. A questão é que é a melhor maneira que a gente tem pra se aproximar. O que a autora pretende defender, que a gente injete células tumorais nos nossos filhos e depois abra a barriga deles pra implantar capsulazinhas de remédio? Ou será que ela acha que um programa de computador ou uma escultura de argila são mais próximos das pessoas do que um camundongo?)
O que o cientista vivisseccionista faz é estudar a fisiologia dessas doenças em organismos que, via de regra, nem sequer as produzem naturalmente. É preciso "fabricar" um camundongo com câncer para testar nele as drogas prometidas para curar o câncer em organismos que não foram "fabricados" com câncer, mas que o desenvolvem.
(sim, e qual é o problema disso? Um engenheiro que quer estudar um cinto de segurança que funcione tem que modelar um acidente de carro, seja no computador, no papel ou numa demonstração ao vivo. O acidente (e o carro) não são intrínsecos ao computador e o papel. O acidente do carro batido ao vivo também é fabricado. Mas a demonstração funciona e produz conhecimento válido e útil. A “naturalidade” ou “inaturalidade” do câncer no camundongo pouco tem a ver com a importância do conhecimento gerado)
A morte por câncer continua a ser praticamente previsível, apesar das drogas às quais o paciente humano é submetido na "luta contra" ele.
(ô sua ignorante, dá uma olhada nisso aqui. Atente particularmente para números como “sobrevivência em cinco anos de câncer de tireóide: 94,6%; testículo: 93,3%; melanoma: 85,1%; útero: 83,2%; mama: 80,4%. Dizer que “a morte por câncer continua a ser praticamente previsível” denota um grau de desinformação grotesco e é um desserviço enorme à saúde pública e ao bem-estar de um monte de gente)
Adiar a morte não cura.
(OK, vá lá, esse é um ponto de vista válido. Que por sinal, se adotado, significa “joguemos fora toda a ciência médica, o sistema de saúde, os profissionais de saúde e por aí afora”. Afinal, tudo que a gente sempre fez em termos de aumentar sobrevivência foi “adiar a morte”. Que eu saiba, nem a medicina nem ciência nenhuma fez ninguém imortal até hoje. Por outro lado, ela provavelmente aumentou a expectativa de vida média da população numa escala de décadas e, ainda que eu (e provavelmente ninguém) possa dizer ao certo o quanto isso se deve à experimentação animal, certamente dá pra dizer que foi um bom naco (uma vez ouvi uma estimativa de dez anos, mas como não sei daonde veio, não vou usar de argumento). Se a autora quiser botar os seus anos a mais de vida fora, sinta-se à vontade e pule dum prédio. Mas deixe os meus pra mim e pros outros, por favor, por favor)
Essa ciência pode abrir mão do uso de animais vivos, pois, embora ela tenha produzido uma quantidade incalculável de drogas para combater os sintomas de tais males, ao sustentar sua investigação no vivisseccionismo, não produz resultados que garantem a "cura" de nenhum daqueles males mais freqüentes que afetam crônica ou agudamente a saúde e destroem a vida humana
(de novo o mesmo argumento tosco. As minhas perguntas que ficam, no fim das contas, são as seguintes: (a) se essa pessoa fosse diagnosticada com diabetes ou hipertensão ou HIV amanhã, será que ela não se trataria porque “o tratamento não cura”, mesmo sabendo que ganharia talvez dez ou vinte anos de vida com isso? (b) Se ela tivesse câncer terminal, será que ela não tomaria analgésico pra tratar sua dor excruciante porque “o tratamento não cura”? (c) Se ela tivesse gastado ridículos cinco minutos da carreira acadêmica dela cruzando “taxa de mortalidade” e “câncer” no google, será que ela teria descoberto que câncer se cura sim?)
(e no fim das contas, deixo o mesmo apelo à autora que costumo deixar a todo defensor da abolição da experimentação animal: NÃO SUBMETA SEU FILHO A NENHUM TRATAMENTO MÉDICO! Deixe a criança arder em febre ao ser consumida por uma pneumonia. Deixe ele urrar de dor quando quebrar a clavícula. Deixe ele ficar seqüelado pra vida inteira porque não tratou uma meningite. É o mínimo que se pode esperar, em termos de coerência.
Espero que eu tenha sido claro.)

SÔNIA TERESINHA FELIPE, 53, doutora em filosofia moral e teoria política pela Universidade de Konstanz (Alemanha) com pós-doutorado em bioética-ética animal pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (Portugal)
(alguns cientistas pró-experimentação diriam que filósofo não tem nada que se meter em assunto do qual não entende; eu discordo absolutamente: acho que o assunto não é dos cientistas que fazem experimentação, é da humanidade em geral. Mas um mínimo de estudo e conhecimento do assunto, do qual a autora obviamente não dispõe seria, digamos assim, útil, antes de escrever prum jornal de circulação nacional)
é professora da graduação e da pós-graduação
em filosofia e do doutorado interdisciplinar em ciências humanas da Universidade Federal de Santa Catarina
(ou seja, esse descalabro desvairado foi sustentado com grana do meu bolso. Super legal).

(Folha de S. Paulo, 10/11/07, seção "Debates": "A ciência pode abrir mão de fazer experiências com animais?")

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