segunda-feira, novembro 19, 2007

comentários derradeiros sobre homens e ratos


bom, depois de ter deixado um comentário verdadeiramente puto nesse blog, e de através de e-mails e cartinhas ter dado minha contribuição pro circo das cobaias pegar fogo (às vezes demais), resolvi que talvez fosse melhor me acalmar um pouco e, nem que seja só dessa vez, escrever que nem adulto pra tentar expressar um ponto de vista racional a respeito de experimentação animal. Acho que assim talvez a gente possa levar adiante um debate menos passional e mais passível de resolver pela razão. Então aí vai a minha melhor tentativa.

em primeiro lugar: sim, o sacrifício de animais de outras espécies, contra a vontade dos mesmos, em benefício da nossa própria é cruel. Isso é óbvio, e acho difícil que mesmo o mais ardoroso defensor da experimentação animal conseguisse negá-lo.

o problema todo, no entanto, é que não é só o uso de cobaias que é cruel. A natureza, ao contrário do ideário romântico de algumas pessoas, é extremamente cruel. A condição humana, de nascer, envelhecer, morrer e apodrecer é igualmente cruel. E se a gente explora os ratos em nosso benefício é em larga parte pra evitar que as bactérias, vírus, parasitas e células tumorais explorem os nossos corpos em benefício deles. Então sim, sacrificar cobaias é uma crueldade, mas é uma crueldade racionalmente escolhida e assumida pra evitar outras formas de crueldade que nos atingem mais diretamente.

em segundo lugar: concedo que a decisão por esta forma de crueldade em detrimento das outras é inargumentavelmente arbitrária. E que o ponto de vista oposto, de que o sofrimento de um indivíduo, não importa de que espécie, seja equivalente, e portanto não se justifica sacrificar milhões de ratos pra tentar prolongar as nossas próprias vidas em alguns anos é igualmente válido. E sou da opinião de que a discussão entre um e outro ponto de vista é inútil, posto que são duas posições eticamente concebíveis que dependem de valores pessoais que cada um, e apenas cada um, pode determinar para si. Então não existe argumentação lógica possível que possa resolver essa questão.

apesar disso, no entanto, me parece que existe uma diferença muito grande entre as pessoas que defendem cada um desses pontos de vista, que é a coerência dos atos de cada lado em relação à posição assumida. As pessoas que defendem a experimentação animal geralmente encaram tal fato como um mal necessário, e esforçam-se para conviver com a crueldade inflingida aos animais ao saber que essa se converte na diminuição do sofrimento humano. Isso me parece uma escolha consciente e uma postura racionalmente assumida. Já aqueles que defendem a abolição da experimentação animal, por uma questão de coerência, deveriam por definição:

a) estarem dispostos eles mesmos a servirem de cobaias para quaisquer novos tratamentos médicos, farmacológicos ou de outra natureza, mesmo sabendo que os riscos de consumir um produto químico nunca antes testado num organismo vivo, no estado atual da ciência, são grosseiramente semelhantes aos de consumir um dejeto industrial qualquer, o que certamente implica no sacrifício de milhares de seres humanos.

ou

b) estarem dispostos a abdicar completamente da medicina moderna como um todo, já que ela não surgirá de um passe de mágica, um programa de computador ou uma revelação divina se não se puder experimentar e testar hipóteses e terapêuticas novas.

não surpreendentemente, apesar de inúmeros e ruidosos protestos em favor dos ratos de laboratório, sinceramente não conheço ninguém que de fato assuma os riscos acima em nome dos animais, que me parecem os requisitos mínimos para que essas pessoas sejam coerentes com o seu discurso. Pelo contrário, a grande maioria dessas pessoas sai tomando comprimidos pra menor dor de cabeça que surja. E tenho razoável certeza (e fico feliz com isso, porque me parece indicar um certo grau do que eu ao menos chamo de "humanidade") que pouquíssimos abolicionistas (ou quiçá nenhum) deixariam um filho seu morrer de uma leucemia facilmente curável "porque a quimioterapia foi testada em animais".

então me parece que esse lado da discussão atua só da boca pra fora. Seja por ingenuidade, desinformação, hipocrisia, pra eximir-se de culpa ou simplesmente pra aparecer, a quase totalidade das pessoas que defendem a abolição da experimentação animal reproduz um discurso que é absolutamente incoerente com seus atos. Então no fim das contas a idéia que fica é que sim, a discussão moral a respeito do tema é insolúvel. Mas que a humanidade em peso - incluindo aí os defensores da experimentação animal, os críticos da mesma idéia e a grande massa silenciosa entre os dois - já fez uma escolha moral ativa em prol do uso de animais em pesquisa e reitera essa escolha todos os dias através de seus atos. E tentar argumentar que não devesse ser assim, quando ninguém parece disposto a assumir as conseqüências, me parece simplesmente jogar conversa fora.

talvez por isso nós cientistas pareçamos tão irritados de vez em quando com o discurso "pró-animais". Não é que ele não nos pareça válido. É simplesmente porque ninguém está disposto a sustentá-lo na prática. Discutir questões deste porte significa arcar com as conseqüências do que se defende, e só parece haver um lado da discussão que parece ser capaz disso. O resto é conversa fiada. Que, se não for devidamente identificada e denunciada como tal, pode colocar em risco a vidae o bem-estar de um monte de gente.

era isso, espero que eu tenha sido claro. E estou aberto a discussão, como vários outros. Contanto que ela seja sustentada por posturas coerentes, e não apenas por palavras vazias.

Um comentário:

Anônimo disse...

Falou e disse.