sábado, dezembro 18, 2010

porto alegre, fim de uma década

A cidade me recebe com o silêncio do sétimo andar, em paz e sem conflagração. As tardes são quentes e inóspitas, propícias pra filmes de hollywood no ar-condicionado do shopping. O trânsito parece menor do que deveria ser. Uma brisa agradável sopra no fim do dia, e eu tenho dinheiro pra pagar as contas. Tenho a casa dos meus pais pra mim no fim-de-semana, quilos de lasanha na geladeira e ninguém pra convidar pra dormir comigo. Mas ainda consigo juntar um monte de gente em uma mesa de bar que termine cedo. Os dias são longos e o sol se põe com uma claridade branda e sem dramas. E até os mendigos parecem mais tranquilos do que eram na semana passada. Esquisitamente, estou em casa e me vem à cabeça o disco de exílio do Caetano, aquele que falava em grama verde, olhos azuis e céus cinzas. Diz uma lenda urbana que isso fez John Lennon chorar. Parafraseando esse último, tudo o que posso dizer é war is over. E o sonho também.

domingo, novembro 28, 2010

a vida nos tempos da guerra (versão zona sul)

sabe aquela manhã em que você acorda plenamente convicto de que dessa vez você não vai perdoá-la? Que vai fechar a cara por uma semana inteira, talvez um mês, por todo o mal que ela tem te feito nos últimos tempos? E então você abre a porta com a sua melhor cara de mau, pronto pra botar as coisas às claras, dizer que daquele jeito não dá mais. E se depara com ela mais linda do que nunca, toda coberta de hidratantes cheirosos, com um sorriso incontornável transbordando de amor no rosto. E descobre que não existe nenhuma palavra que você possa dizer que não contenha dentro de si todo o perdão do universo.
pois é, hoje foi assim.
essas cidades são todas umas putas.
particularmente por darem o seu amor a tão poucos.

segunda-feira, novembro 22, 2010

pessoanices gratuitas (iii)

viver é preciso.
navegar, sei lá eu.

pessoanices gratuitas (ii)

pessoanices gratuitas (i)

o dia em que decidiram que a coerência era uma virtude e a preguiça era um pecado foi o dia em que a humanidade rompeu relações comigo.

quinta-feira, novembro 11, 2010

coisas pra se pensar em instantes de asfixia (lviii)

nunca levei fé nessa história de tantos por cento de inspiração e tantos por cento de transpiração. Pra mim, escrever foi sempre cem por cento de respiração. Simples assim.

segunda-feira, novembro 01, 2010

da série "o que seria da minha confiança básica no mundo se não fosse hollywood?" (ii/iii)

talvez tudo se faça claro. Se a expectativa de vida do brasileiro é de 73 anos, e eu tenho 31, isso já me põe ali pelo meio do segundo terço. Talvez isso explique tudo que tem dado errado. Todo esse tempo nublado murrinha. Toda a neblina em cima do pântano. Todas as bases rebeldes invadidas por robôs andadores. E até essas fasciculações esquisitas nos músculos do braço. Isso tudo não é o fim, por mais que pareça. Isso é apenas o Império Contra-Ataca.

breve homenagem a um cachorro morto

falar mal de política hoje em dia é como chutar cachorro morto. Dizer que o país tá perdido, que o sistema não tem jeito e que tinha que explodir uma bomba em Brasília parece ser praticamente um senso comum, e é o jeito mais fácil de conseguir a empatia do taxista ou do cara na fila do banco. As estatísticas não mentem...
- Tiririca, “pior que tá não fica”: 1,3 milhões de votos.
- Abstenções no 2º turno: 29,19 milhões.
- Votos nulos: 4,69 milhões (e a apuração não terminou).
- Capitão Nascimento socando o secretário de segurança pública: 6 milhões de espectadores (e nem perto de parar por aí).
nessas horas, ver o país eleger um presidente sem sobressalto, contando os votos em um punhado de horas, com todo mundo assistindo o discurso de posse na TV como se fosse banal não tem preço.
e confesso que ao contrário de quase todo mundo ao meu redor, eu já andava torcendo pra Dilma e pro Serra cada vez que eles apareciam no debate. Mesmo não acreditando de verdade no que nenhum dos dois dizia. Simplesmente porque, em tempos de catarse coletiva em dizer que tá tudo uma merda e não tem como piorar (frequentemente vindo de gente que não tá nem minimamente próximo da merda), ver neguinho indo votar com adesivo no peito, por convicção, sem fanatismo nem ingenuidade, me inspira um certo respeito. Ver gente fazendo campanha ao invés de falando mal do mundo no twitter começou a me inspirar um certo respeito. E ver gente em cima de palanque dando a cara pra bater, ao invés de ser mais um cara sentado na mesa do bar se queixando de que a sociedade tá toda podre, como se a cerveja e o bolinho de bacalhau se materializassem ali por mérito exclusivo dele, no fundo também me inspira respeito. Mesmo que uma parte bastante grande dele não seja nem um pouco merecido.
e até eu, que normalmente não acredito em porra nenhuma, nesses dias tranquilos em que se assiste o discurso de posse na internet enquanto se pede uma pizza no telefone tenho a impressão extremamente pragmática de que alguma coisa não vai tão mal. Chutem os cachorros à vontade, mas aqui não é a Bolívia, nem a Etiópia, nem o Afeganistão. Também não é nenhuma Brastemp. Mas sei lá, se baixar a cabeça e botar pra funcionar, alguma coisa anda. E algum mérito nisso o tal do sistema deve ter. Por mais errado que esteja. E ao olhar o rosto igualmente pragmático e sem carisma que encarna pela primeira vez o posto de representante de tudo isso na TV, a minha maior esperança é que ele também intua isso. A julgar pelos primeiros vinte minutos, pelo menos, ainda dá pra esperar que sim, quem sabe.
enfim, boa sorte.

quinta-feira, outubro 21, 2010

amendoeira blues











































tudo o que eu tenho a dizer.

sexta-feira, outubro 01, 2010

breviário da implosão

em dezembro implodem a famigerada “perna seca” do hospital do fundão. Aquela ruína com pinta de garagem intergaláctica que nunca chegou a ser ocupada. Minhas férias vão começar uma semana mais cedo às custas disso, mas de resto não parece nada de mais. Implosões são um procedimento simples e previsível, como explicou o pessoal engravatado que veio explicar pra gente esses dias, cheio de vídeos institucionais em que um prefeito sorridente detonava um prédio condenado. Pareceram convincentes.
mas o que importa na história não é a implosão (novamente, simples e previsível). O que fascina é a lenta, gradual e inexorável separação da parte funcionante do hospital da parte condenada. Que há semanas vem sendo executada a martelada, andar por andar, num ritmo agonizantemente lento por homenzinhos de laranja. E que pelas minhas contas ainda deve demorar uns dois meses de trabalho. Ou algo assim. Porque implodir um troço morto é a coisa mais fácil do mundo. Mas separar a parte morta da viva, pra que a parte viva não desabe junto com a outra, é uma sequência repetitiva e interminável de marteladas no concreto. Uma a uma. Do décimo quarto andar até o rés-do-chão.
não sei se sou eu que ando propenso a enxergar metáforas. Mas sei lá, ainda não me acostumei a chegar no trabalho e olhar praquele buraco. Ao contrário de todo o povo que passa, eu não ando imune aos abalos. Pain is in the eye of the beholder.

terça-feira, setembro 21, 2010

você sabe que a sua narrativa de vida está se tornando discretamente esquizofrênica quando



o caminhão à sua frente no trânsito começa a falar com você. E ainda por cima promete mudanças.

das vantagens de se andar com lágrimas nos olhos de vez em quando (i)

com bastante cílios e um pouco de criatividade, qualquer poste na rua vira uma fonte infindável de fogos de artifício.

sexta-feira, setembro 17, 2010

a propósito do post imediatamente abaixo (ii)

a ilustração, por essas coincidências da vida, é do manuscrito de 1984, do Orwell, clássico-mor sobre como reescrever a história. O ministério da verdade não me deixa mentir.

quarta-feira, setembro 15, 2010

nossas últimas versões

















então vocês começarão com versões tão diferentes da história que rirão à beça quando ganharem coragem pra trocá-las pela primeira vez. E descobrirem que apesar de terem estado nas mesmas cenas, ou mesmo juntos no centro do palco, vocês até então tinham feito parte de peças distintas, casualmente encenadas no mesmo teatro. Que tinham sido coadjuvantes involuntários de um texto que nem sequer tinham lido. E depois de rirem e beberem mais vinho e fecharem a janela pros vizinhos não verem o que vocês farão depois, vocês acordarão no outro dia dispostos a não deixarem mais suas versões divergirem. E passarão a se telefonar todos os finais de tarde dispostos a contarem e ouvirem como foram seus dias, e ao se encontrarem num bar qualquer revisarão suas versões, trocarão críticas, se frustrarão com as discrepâncias. Mas estarão sempre prontos pra puxar o lápis e rabiscar anotações, correções, maneiras de deixar as histórias mais compatíveis. E em algum momento, pra garantir que o espetáculo não saia do rumo, vocês talvez cheguem a unificar o cenário, contratem um cenógrafo ou um arquiteto e debatam longamente na loja de móveis pra ter certeza de que aquele abajur realmente combina com o enredo, que a essa altura vocês já têm a certeza de que é de fato o mesmo. E de tão certos de transitarem na mesma peça, tão convencidos de terem se tornado os personagens que representam, talvez vocês comecem então a deixar os ensaios de lado, seguros que serão capazes de improvisar, de se adaptar aos deslizes e aos esquecimentos um do outro, às falas empacadas na ponta da língua. Até o dia em que uma entrada ou saída de cena inesperada de um se atravesse na frente da história do outro, interrompendo bruscamente o fluxo da narrativa e fazendo vocês pararem a encenação pra revisar as anotações, descobrir exatamente quem errou a deixa. E cometerem o erro de tirar os scripts do bolso, apenas pra se darem conta de que os textos que vocês interpretam não são mais os mesmos. Sim, haverá pontos em comum, um mesmo cenário e uma mesma época. Mas as discrepâncias entre os acontecimentos serão óbvias, uma conversa romântica numa praia deserta transformada em um momento entediado numa estação de trem, os protagonistas de uma das histórias reduzidos a coadjuvantes da outra. E sem saber o que fazer com personagens tão distintos num cenário em comum vocês retrocederão para trás das cortinas sob aplausos tímidos, e sairão do teatro cada qual para o seu lado. Em camarins separados, trabalharão febrilmente em reescrever suas histórias, já não pra fazer delas a mesma, mas simplesmente pra fazer sentido, encontrar um fio narrativo pras falas desconexas e personagens desencontrados. E apelando pra suas soluções dramáticas preferidas, sem se preocupar demais com os fatos, vocês se converterão uma vez mais em ficcionistas onipotentes. Começando a gostar das suas novas versões, vocês as relerão antes de dormir e as carregarão no dia seguinte, tirando-as do bolso pra folhear no metrô e mostrar pros amigos. E começarão a interpretar seus novos personagens ao natural, antes mesmo de terem muita idéia da continuação do enredo. Até o dia em que vocês se encontrarão em alguma esquina movimentada, e sem que nenhum dos dois tenha nada de urgente pra fazer entrarão num café pra falarem do que andam fazendo. Então tirarão os textos do bolso, lembra aquela história que a gente tinha tentado escrever?, e mostrarão um ao outro suas últimas versões. E lendo aquilo, incrédulos, saberão que já não há nada mais de uma história em outra, que as falas estão todas trocadas, que os personagens que um dia foram seus já são outros nos quais vocês sequer se reconhecem mais. Sem querer aceitar, vocês ainda tentarão trocar reclamações banais, acusações baratas, cobranças de protagonismo. Mas a revolta será inútil, pois tão logo vocês virarem as costas mesmo essas reclamações já terão sido reescritas. Então o café termina, e sem saber o que fazer vocês se despedem rápidos e desajeitados. E caminham pra casa, abismados com a constatação de que a história que vocês carregam no bolso é o último exemplar de sua espécie. De que já não há coautores, atores ou espectadores. E de que ela sobreviverá apenas até o momento em que por cansaço ou alzheimer vocês resolvam esquecê-la. Já em casa vocês pegarão o texto, brincarão com as páginas olhando distraídos pra sacada, pra lata de lixo, pra lareira acesa. E saberão que o desaparecimento daquela versão depende apenas da vontade de começar um texto novo. A caixa de fósforos está sobre a mesa. Dou-lhe uma, dou-lhe duas.

domingo, setembro 05, 2010

breviário














em alguma esquina a paixão do momento deu lugar à da busca. E foi tudo o que houve. O resto é ruído.

terça-feira, agosto 17, 2010

quem ama castra

então o mundo anda difícil pra você. Seus relacionamentos não dão certo, seus amigos se aproveitam de você, as pessoas lhe parecem todas mesquinhas e egoístas. Seu chefe é um filho da puta, seu ex-marido a trocou por uma mulher mais nova, seus filhos adolescentes levantam a voz o tempo inteiro. A vida não facilita as coisas e a sua paciência anda o tempo todo por um fio, suas explosões e crises de choro e enxaquecas cada vez mais frequentes, o mundo sempre prestes a desabar. Então um belo dia você perde a paciência e desiste. Desiste de se relacionar com pessoas como você, cheias de desejos e anseios e vontades e dores de cabeça próprias. E decide começar de novo. Então você vai numa loja cheia de alpiste, gaiolas e ossos de plástico, com funcionários animados e sorridentes. E na vitrine você encontra uma nova companhia. Um bicho orelhudo e fofo, de pelo malhado, cujo cérebro a ciência lhe assegura que jamais vai passar de setenta e cinco gramas. E então você o leva pra casa, constrói uma caminha, e o cria desde pequeno dando reforço positivo pra todas as demonstrações de amor que ele faz por você. Faz carinho na barriga quando ele senta do seu lado, dá um biscoito quando ele traz a bolinha, fala com uma voz fofa e idiota quando ele balança o rabinho. E não hesita em dar um tapinha no rosto quando ele esfrega os genitais na sua canela, gritar com ele quando rói o papel higiênico, e encher o tapete de spray de pimenta quando ele faz cocô no meio da sala. E a rotina de carinho na barriga aqui e tapinha ali se repete por dias cada vez mais repetitivos, num ritual capaz de adestrar o mais atrofiado dos cérebros. O bichinho então cresce, e quando seus filhos resolvem sair de casa porque não aguentam mais seu mau humor constante ele se torna a sua melhor companhia, aninhado nos seus pés vestidos com pantufas em frente à televisão. Na ausência de outra alma viva na casa, você divide a comida do jantar com ele e deixa-o dormir na sua cama, e todos os dias de manhã ele lhe retribui com uma lambida agradecida no rosto. Com o tempo os almoços de família começam a rarear, os compromissos se tornam mais esparsos, e a vida abranda sem que ninguém apareça, até porque você só sai de casa pra passear com seu amiguinho. E então você começa a achar que já é hora de levá-lo pra cruzar, passa a observar com atenção as fêmeas no parque, anota o telefone das donas com quem você puxa conversa. E chega o dia que você visita uma delas, e toma um chá enquanto deixa o seu amigo se lambuzar por minutos rigorosamente controlados com uma fêmea. Tempo suficiente pra produzir algumas cópias relativamente bem feitas dele dali a alguns meses, uma das quais você levará consigo. Pra reiniciar o ciclo previsível de carinho na barriga, biscoito e bolinha, tapinha e cocô. E já chegando na velhice você se associa ao instituto nina rosa, cola um adesivo fofo da sociedade protetora dos animais no seu carro, começa a contribuir com um fundo comunitário pra alimentar os gatos de rua do bairro. Recebe em casa folhetos de propaganda dos últimos lançamentos de ração, se cadastra em fóruns de discussão de suas raças favoritas, cola o telefone do veterinário na porta da sua geladeira. E sai espalhando pras poucas pessoas com quem ainda fala, as frequentadoras daquele mesmo canto do parque, que os seus cachorros são mais fiéis e mais amorosos do que qualquer ser humano que você já tenha conhecido, e que eles nunca deixaram de lhe fazer companhia. Quando na verdade tudo o que aconteceu foi que, ao contrário das pessoas, eles simplesmente não tiveram opção.

segunda-feira, agosto 16, 2010

dois dias de inverno e uma morte gentil















o primeiro dia de inverno em um ano de rio de janeiro combina comigo. Combina com o meu jeito quieto, com os meus cabelos grisalhos, com a imobilidade do apartamento vazio. E me ajuda a conviver com uma morte lenta, quase que gentil, oferecida a mim entre sorrisos e bichos de pelúcia. E eu me dou conta que devagar vou entrando em acordo com ela, não por concordância senão por impotência em fazer algo que não seja acompanhar o fluxo do mundo. E como que em retribuição o mundo é gentil o suficiente pra acompanhar o meu luto, acinzentando o céu e derrubando os termômetros. E fazendo com que a dor vá devagar deixando de ser o peso reprimido no caminhar rápido sobre a barata ribeiro, na lágrima que escapa no banco do 485 preso no trânsito da linha vermelha. E passe a ser uma melancolia que extravasa a mim mesmo e escorre das minhas caixas de mudança abertas. Um frio discreto que invade a baía da guanabara, semeando araucárias na floresta da tijuca, pintando o calçadão da urca com flores de ipê, botando a faixa e o laço nas mãos daquele tio que fica em cima do morro. E enquanto a rua se esvazia e o mundo encolhe, começo a sentir novamente que ele possa fazer sentido, e me sinto esquisitamente feliz. Porque sinto que o frio de fora começa a substituir o de dentro, que novamente o que eu carrego em mim é o que pode me esquentar. Que se eu pegar um cobertor e um capuz eu possa quem sabe me proteger, já que o desconforto volta a viver do outro lado da epiderme. E assim abraçar dentro do casaco o que ainda me resta, manter apertado entre os braços, e com meu pequeno punhado de pedaços deitar na rede da sacada, olhar pra fora, ver o mundo. E reaprender a ficar imóvel, sabendo que agora é a vez dele se movimentar no meu lugar.

terça-feira, julho 20, 2010

filosofia zen feita em casa (xviii) - sobre a inevitabilidade da incoerência

por uma questão de coerência, não me moveria até o mundo começar a fazer sentido. Mas por uma questão de realismo, sei que ele só começa a fazer sentido depois que eu me mover.

domingo, julho 11, 2010

do lento aprendizado das tortinhas de palmito congeladas








uma só é pequena pra dois
mas abrindo duas vai sempre sobrar
pra guardar pra alguém que chegue
ou convidar um a mais pra jantar
mas embora pareça certo
a partilha nunca é precisa
as facas são cegas, as divisões toscas
e alguém sempre acaba com fome
então quem sabe melhor
comer três quartos sozinho
guardar o resto no congelador
e esperar que acumule, caso não
chegue ninguém inesperado
nenhuma fome imprevista
e sem saber do futuro
ir juntando os pedaços
aos poucos

sábado, julho 10, 2010

sobre a sanidade escoando pelo ralo

mais de duas semanas que ninguém dorme aqui em casa, e o ralo do chuveiro continua entupindo com cabelo. Algo me diz que logo vou ter que optar entre a paranóia de que alguém invade meu apartamento pra tomar banho e a depressão de encarar a calvície como possibilidade.

quinta-feira, julho 01, 2010

quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas (mcxviii)

reclamar que a internet vai acabar com o português culto é a repetição exata da velha ideia de que escrever no vernáculo vai acabar com o latim. Só que com uns quinhentos anos de atraso. É incrível como tem gente com dificuldade pra mudar o disco.
by the way, a resposta é "sim, vai mesmo." Mas e daí?

quarta-feira, junho 23, 2010

das verdades mais imbecis que já se conseguiu botar na boca de um público com doutorado completo

americanos: um povo que resolve botar um país abaixo e reerguê-lo do zero no meio do deserto no oriente médio, mas que se considera terminantemente incapaz de financiar um ensaio clínico sem ajuda da indústria farmacêutica porque é “muito caro”. Como se, no fim das contas, não fosse um pobre coitado com alguma doença crônica de merda que fosse pagar a conta. Porra, com toda a franqueza, vão catar coquinho.

domingo, junho 20, 2010

quase solstício de inverno















alguém aí sabe de concurso aberto pra intelectual sem dedicação exclusiva? Aceito vinte horas ou menos.

domingo, maio 30, 2010

novas roupas coloridas

como dizia a minha mãe, e também aquela outra menina que chamava o mensageiro da caridade pra levar as minhas coisas embora no meio da tarde, eu sempre tive uma puta dificuldade pra esvaziar o meu armário. Por outro lado, ao contrário do que dizia o belchior, o passado é uma roupa que continua quase sempre me servindo. Ainda que eventualmente eu tenha que me apertar um pouquinho dentro dela. E somando todos os figurinos que vão se acumulando pelo caminho, eu sinto quase como se pudesse acordar de manhã e escolher a idade com a qual eu quero viver o dia. E também como se todo fim de noite eu chegasse em casa e me despisse dela, e deitando no colchão inflável assumisse a idade que levo colada no corpo, que a essa altura nem eu mesmo sei direito qual é.

terça-feira, maio 25, 2010

i'm not there

não sei porque achei que devia compartilhar isso, mas em egosearches recentes a função autocompletar do google tem sempre me sugerido "olavo amaral medicina" e "olavo amaral médico" como opções. Como se alguém lá fora andasse procurando o meu nome e resolvesse refinar a busca depois de bisolhar os primeiros hits, talvez por não achar que eu fosse médico. Ou, melhor ainda, por não achar que eu fosse eu. Vai saber por quê, mas ambas as possibilidades me orgulham pra burro.

quinta-feira, maio 13, 2010

regras pra justificar uma exceção

sempre desconfiei do conceito de “music video”. Tanto no que diz respeito a videoclipes (ai que palavra mais século passado...) como a DVDs de shows ou a imagens randômicas pra acompanhar música nas mais variadas mídias. Pura e simplesmente, nada contra a idéia em si. Mas nunca me pareceu algo que olhar alguém tocando um instrumento numa tela adicionasse suficientemente à música pra que justificasse o marketing em volta.
e no fundo, no fundo, esse troço de botar imagens em música sempre me pareceu simplesmente empacotá-la pra tornar algo vendável. Primeiro passando videoclipes na TV, que naturalmente é um veículo de publicidade muito melhor do que o pobre rádio. Depois com o ridículo advento dos “DVDs de shows” (e DVDs em geral) que alguém empurrou goela do público abaixo como algo a ser comprado (alguém lembra de alguma vez ter comprado uma fita de videocassete? Pois como diabos convenceram a geral que a mesma coisa numa mídia diferente era algo pra comprar?). E sem vender nada, mas ainda por força do mercado, hoje em dia se abate sobre o mundo uma terceira onda de vídeo forçosamente acoplado à música. Meramente porque por razões obscuras, compartilhar vídeo em streaming tornou-se fácil e universal enquanto fazer isso com áudio nunca chegou a ficar tão simples assim. Fazendo com que hoje em dia o jeito padrão de mostrar uma música pra alguém online seja mandar um link do Youtube. O que seria ótimo, não fosse o fato de que 95% dos vídeos feitos por pessoas bem intencionadas que devidem compartilhar suas músicas são sequências toscas de imagens piegas que eu jamais teria coragem de enviar pra ninguém.
enfim, só pra dizer que o excesso de imagens que não acrescentam nada às vezes cansa. Mas só pra dizer também que sempre tem uma exceção. Essa em particular transtornou meu dia por várias horas no início da semana depois que algum obcecado jogou no meu twitter. E o pior de tudo é que fica bem melhor em alta definição. Chamem-me de vendido. Mas sei lá, devem ser as mãos.

segunda-feira, maio 03, 2010

procura-se

algo inútil e urgente pra fazer. Logo.

domingo, abril 18, 2010

me autodivulgando a mim mesmo de novo

como parte da festipoa literária, que chega ao seu terceiro ano (pelas minhas contas) já dando passos decididos sem apoio e falando em português fluente, vai aí o meu calendário de eventos literarioportoalegrenses da semana:
- dia 21 de abril (quarta) às 20h, estarei no lançamento da coletânea O Melhor da Festa - volume 2, com textos do pessoal que participou da edição 2009 do evento. Sim, tem um troço meu lá no meio, como seria de se esperar. E a companhia em volta é deveras honrosa. Vai ser no Boteco do Pé (João Alfredo, 571), e além dos autógrafos deve rolar alguma espécie de agito cultural depois.
- dia 25 de abril (domingo) às 14h, estou num debate com Flávio Wild e Cássio Pantaleoni sobre "Conto, imagem e construção do invisível". Rola na Palavraria (Vasco da Gama, 165), ali pertinho de casa.
o resto da programação do evento tá no site, pros interessados. Apareçam. É tudo de graça, (ok, minto, o livro deve custar alguma coisa). E eu tenho várias saudades pra matar.

sexta-feira, abril 16, 2010

com o corpo em movimento e o olhar parado

a decupagem da vida anda difícil esses dias.

quinta-feira, abril 08, 2010

ressaca do apocalipse

velho chinês grita com a moça da lavanderia do outro lado da rua, em chinês. Garotos ensaiam jogadas de rugby na beira da praia em Copacabana. Na TV do boteco um amigo meu beija uma atriz gostosa na novela das oito. A vida parece voltar lentamente ao normal no Rio. Mas em cada canto alguma coisa insiste em indicar que não foi só um sonho ruim, do mar em ressaca furiosa à lama barrenta das calçadas ao trânsito que inexplicavelmente flui à pequena multidão aglomerada em frente ao IML da Leopoldina. E mais do que incitar pensamentos de fim do mundo, tudo isso meramente me faz pensar se algum dia houve ou haverá alguma coisa que possa ser chamada de vida normal por aqui. Pra mim ao menos, acho que não. E mesmo se a Lagoa seguir aumentando e acastanhando e completar sua lenta metamorfose em Rio Guaíba, mesmo se todos os morros desabarem até chegarem na altura do Ricaldone, ainda assim nunca será exatamente a minha casa. Por mera falta de repouso. Aqui é o acontecer permanente.

sábado, março 27, 2010

lenta agonia do que ainda resta do verão

e agora, o que se faz quando esse presente perene acabar?

segunda-feira, março 22, 2010

porque afinal não há nada de errado em foder com o pau dos amigos de vez em quando

no fim da tarde de sábado em Porto Alegre peguei um táxi até o Gasômetro pra ver os amigos cartolas tocarem no aniversário da cidade. Às vezes me pergunto por que ainda faço isso, posto que já devo ter visto os caras tocarem umas dez ou quinze vezes pelo menos. A resposta simples (que eu já tinha antes de ir) é que eu sempre saio do show um pouco mais feliz do que entrei. O que já devia bastar. Mas dessa vez o mundo fez questão de me dar a resposta complicada também. Porque no gramado tosco da beira do Guaíba, no meio de adolescentes de preto saídos de algum subúrbio obviamente não abastado da grande POA, que pulam feito uns maníacos como se fosse show dos Stones, eu me dou conta que de todos os meus amigos artistas, esses caras são os únicos que verdadeiramente conseguiram cruzar a barreira que realmente importa. A de falarem e serem entendidos com toda a sinceridade por gente realmente diferente deles. O que eu (assim como todos os escritores que eu conheço, e como praticamente toda a academia brasileira de letras, a bem da verdade) falho miseravelmente em fazer, por estar restrito ao mundinho literário tamanho cabeça de alfinete do país. E isso tudo me daria uma puta inveja, se não me deixasse muito feliz. E nem é por ser amigo da banda. Mas muito mais porque, ali pulando junto na beira do palco, no fundo eu consigo compactuar nesse processo. E, mesmo estando do lado dos fãs, sentir que juntos, todos nós, a gente tá fazendo alguma coisa que preste.
incidentalmente, os caras acabam de lançar um disco chamado “Quase Certeza Absoluta”. Aparentemente tá nas melhores lojas de discos, pelo menos em Porto Alegre (pra quem tem menos de vinte anos, “loja de discos” é um lugar em que a gente costumava ir de vez em quando há muito tempo atrás). Pros que moram longe, dá pra comprar aqui. Ou então esperar que não demore pra cair no soulseek. Ave.

sábado, março 20, 2010

atrator estranho

uma época, quando eu era mais jovem, minha desculpa favorita pra nunca ter escrito um romance era que a vida mudava rápido demais pra se manter estável em qualquer projeto literário duradouro. E eu prometia pra mim mesmo que uma hora dessas, quando as coisas aquietassem, aí sim eu ia poder entrar na brincadeira.
hoje em dia eu continuo nunca tendo escrito um romance. Mas essa promessa parece cada vez mais furada. Primeiro porque eu já não sou tão jovem pra usá-la. Segundo porque já duvido de que um romance dependa de idéias estáveis sobre qualquer coisa, até porque elas não existem – minha impressão é que tudo o que dá pra fazer é se imbuir da verdade de um poema, de uma máscara sincera que se possa vestir de vez em quando. E terceiro porque a idéia de que a vida viria a ficar mais estável tem se revelado a mais estúpida de todas elas. Pelo menos até agora.
porque se é verdade que as descobertas e idéias e estados de espírito realmente novos vão rareando, por outro lado a idade vem me fazendo acumular um número de máscaras grande o suficiente pra me pulverizar por completo. E nesses tempos de dispersão geográfica e emocional, cada vez mais a vida parece ciclar incrivelmente rápido por atratores estranhos e desconexos. Todos eles urgentes e palpáveis, todos eles eu. Todos máscaras sinceras e vitais pra se conseguir dizer qualquer coisa. E no tempo presente eu sou capaz de me reconhecer em todos, e tudo parece muito natural. Com a exceção dos vinte segundos de estranhamento ao acordar em uma cama cujo atrator não tem nada a ver com o do sonho.
e pensando por esse lado deveria ser a fase mais eloquente da minha vida: afinal, se não existe poesia que não nasça do espanto, não há nada como o deslocamento do olhar pra poder espantar-se. Mas cada máscara e cada olhar novo tem me durado no rosto por tão pouco tempo que eu não consigo sequer sentar na frente do computador pra escrever qualquer coisa. Antes que qualquer palavra sedimente, alguém gira o caleidoscópio e a imagem já é outra.
é desses atratores estranhos da vida que vem a palavra, granted. Mas também é deles que vem o silêncio. Por ora, tenho andado com o segundo. Por respeito a ambos, e por pura incapacidade de fazer diferente.

segunda-feira, março 01, 2010

do manual de técnicas básicas de vendas para empresários da indústria fonográfica (xiv)

então, querido empresário, o que você faz pro consumidor voltar a sentir a música como “sua” depois que comprar um disco deixou de fazer qualquer sentido, já que o mercado inteiro internalizou que música é um bem gratuito?
o plano é simples:
(a) convença a banda que você empresaria a fazer shows
(b) cobre bem caro pelo ingresso
(c) permita a entrada de câmeras digitais
(d) deixe a presa entrar, fotografar e filmar. E depois colocar as fotos e vídeos do show no seu orkut, facebook ou youtube, ao gosto do freguês.
pronto,você acaba de fazer com que um bem universal se transforme mais uma vez numa exclusividade para poucos. E, melhor ainda, uma exclusividade passível de exibição para os que não a possuem. O que, no fundo, sempre foi a essência dos melhores bens de consumo.
agora sente em sua poltrona e aproveite seu martini. Quem está ligando pra música, afinal?

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

quinta-feira de cinzas

mais de dez anos depois de ter saído da década dos dezealgos, carnaval e solidão me dão a oportunidade ímpar de ser adolescente de novo por um breve momento. E o engraçado é perceber que depois de tanto tempo ainda sou perfeitamente capaz de repetir os mesmos padrões, esbarrar nos mesmos limites, e cometer os mesmos erros daquela época. E de sempre. Com a única diferença de que eles parecem importar bem menos. E essa pequena mudança, o acesso mais natural ao botão do whatever (vulgo foda-se), faz com que a vida fique surpreendentemente mais fácil. Talvez porque amadurecer não seja superar limites, mas simplesmente aprender a relativizá-los. E é com essa maturidade estranha que me agarro à oportunidade ímpar que a vida me dá de refazer minhas apostas muito depois do prazo. Provavelmente pra errá-las todas outra vez do meu jeito torto. Mas com um pouco mais de graça e gingado do que antes.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

sábado, fevereiro 13, 2010

insônia branca, manhã de carnaval

sou mais uma ilha na cidade. No meio de tantas outras mônades absortas em atividades desconexas no espaço restrito desenhado pela geografia. E ainda assim compartilho a mesma casa do cara que pesca de noite no acostamento da linha vermelha. Do corpo adormecido na calçada que eu tenho que saltar pra entrar na portaria. Dos pássaros que mergulham na água surrealmente clara de ipanema (já deixou de ser), alheios à multidão de banhistas. Do ambulante que vende cerveja através da janela do ônibus no meio do tráfego (minha melhor vingança contra o transporte público). Da caixa da farmácia que cheira o sabonete com um sorriso antes de me vender, sem que isso resulte em demissão sumária como em qualquer lugar civilizado (meu melhor motivo de orgulho nacional). E dos urubus que pairam permanentemente sobre a cidade, numa altura imensa e sem sentido que evolução nenhuma me explica. Não consigo dormir, são seis da manhã num sábado de carnaval. E vou pra rua de novo, abraçar uma vez mais o que é apenas o lugar certo pros meus tempos mais estranhos.

quarta-feira, janeiro 27, 2010

consideração a ser feita antes que eu comece a reclamar demais da vida

um emprego de adjunto na universidade pública por 35 anos equivale a mais ou menos 3,4 MacArthur awards. Sem contar a aposentadoria. Pra um pouco menos de liberdade e uma que outra aula pra dar de vez em quando, talvez eu tenha que admitir que não é de todo mau.

a premonição é um prato que se come frio

a antecipação premonitória da literatura (e da arte em geral) é sempre algo que me surpreende. Não é uma nem duas vezes que eu leio ou ouço algo por anos a fio, até que o sentido que se ensaiava ali por todo aquele tempo finalmente se concretiza em algo palpável. Vide a Gal jogando tudo num verso intitulado mal secreto e essas coisas assim. Mas mais estranho do que desvendar profecias alheias é às vezes sentir que o que eu mesmo escrevo tem poderes de premonição. Esse domingo resolvi meio do nada ler as primeiras (e únicas) quinze páginas de uma novela sobre um professor universitário frustrado, que eu tinha começado a escrever há mais de um ano pra logo abortar e nunca mais botar o olho. E de queixo caído constatei que, sem ter como saber de quase nada do que viria a se passar de lá pra cá, eu tinha previsto quase todo o meu momento presente, no que ele tem de melhor e pior. E no que ele tem de mais pessoal e inacessível a alguém que olhasse de fora. E mesmo que ter previsto os fatos (inclusive o não-desprezível acontecimento de virar professor) tenha sido mera adivinhação, a presciência do meu estado de espírito depois deles acontecidos é exata demais pra ser por acaso. O que talvez não seja de se surpreender. Porque ainda que sejam os fatos que determinam o rumo da vida, a nossa reação aos fatos é sempre a ficção pessoal que a gente cria pra lidar com eles. E isso talvez não seja tão diferente assim de escrever ficção. No papel ou na vida, nosso repertório de personagens possíveis é algo limitado. E quando os acontecimentos do papel por acaso vão de encontro aos da vida real, a convergência desses personagens chega a ser chocante. Mesmo pra quem escreve literatura fantástica, a vida acaba no fim das contas imitando a arte. Ainda que com um pouco menos de vacas esquartejadas e bolhas protoplásmicas.

domingo, janeiro 10, 2010

sábado, janeiro 09, 2010

fotocomposição












































por que o travesseiro insiste em cair pra direita?

quarta-feira, janeiro 06, 2010

circo armado



















quando começamos a brigar o circo já está todo armado, o público sentado esperando o espetáculo: crianças em roupas de festa, pais com cara de pouca paciência, pipoqueiros e vendedores de algodão doce disputando espaço entre as filas. E nem sei dizer de quem parte a primeira acusação, estamos os dois prestes a entrar em cena, uniformes postos, e aí começam as farpas, quem é tu pra me dizer isso, caralho?, e em resposta eu chuto as grades da jaula e digo então entra, vai!, ouvindo a vibração do metal abafar os rugidos dos leões. Mas já é tarde, a música toca forte nos alto-falantes, as portas do camarim se abrem e os membros da trupe vão saindo um a um, bailarinas rodando varinhas e palhaços correndo em coreografias destrambelhadas. E ao ouvirmos as risadas das crianças e sentirmos os empurrões atrás de nós sabemos que não temos opção senão adentrar o picadeiro, mesmo que estejas mais preocupada no momento em esmurrar minha cabeça com um fagote roubado dos meninos da banda. Então nos colocamos em fila junto aos acrobatas e agradecemos a ovação do público, enquanto eu roubo as bolas dos malabaristas e as arremesso contra o teu peito, te obrigando a buscar refúgio atrás dos halterofilistas musculosos. O palco roda à nossa volta e nos perseguimos com furor, mas nada disso parece perturbar o número dos palhaços, que correm dos esguichos de água e esbarram em nós, me jogando contra o globo da morte em que aceleras com a motocicleta apontada na minha direção. Pra minha sorte, no entanto, o mágico encapuzado e sua assistente logo aparecem pra te levar como voluntária, e eu me coloco em pé sobre os pôneis pra assistir enquanto te debates amarrada na mesa e me lanças olhares furiosos. Mas ao ver a serra se aproximar do teu corpo minha euforia vai se transformando em ansiedade, tuas pernas se separam do tronco e batem desesperadas até pararem, e conhecer o truque não me impede de me aproximar correndo, tropeçando entre os obstáculos dos cachorros amestrados, até sentir uma dor aguda no peito quando surges do fundo falso e me acertas em cheio com a barra do trapézio. E enquanto o mágico colhe os aplausos eu sou levantado do chão e balanço cada vez mais alto, tu te equilibras com graça no trapézio ao lado e nos gritamos insultos inflamados que ouvimos só no breve momento em que nos cruzamos, “...lho da put...” e já subimos novamente, “...isso de novo eu te mat...” e mais uma volta, a platéia um borrão de rostos sorridentes embaixo de nós. Até que eu não aguento a raiva e me arremesso contra ti, derrubando-nos sobre a rede de segurança pela qual rolamos até o monte de alfafa, sob o olhar apático dos elefantes. E enquanto te levantas entre as trombas eu apanho o chicote e o estalo histérico contra o chão, fazendo a manada dispersar e chamando a atenção dos assistentes do domador, que em seus maiôs cheios de penachos aparecem pra me conduzir sob intensos aplausos para a jaula dos leões. “Mas eu sou contorcionista”, grito histérico sem que ninguém ouça, cada vez mais perto do cadafalso enquanto acenas para os felinos com um bife e apontas pra minha cabeça. E ao ouvir a porta fechar atrás de mim te vejo do outro lado das grades e avanço na tua direção sem dar importância a jubas e dentes, chicoteando o chão em todas as direções num bailado espantoso, que faz os animais dispersarem e subirem pelas paredes enquanto eu comprimo o corpo contra as barras de ferro pra me aproximar de ti, nós dois separados pelo metal e ainda assim conseguindo nos tocar nos excessos de gordura das coxas e barrigas salientes. E já quase vou me esquecendo da razão da briga quando de súbito a respiração úmida no meu pescoço se converte em rugido e depois em pânico, pra em seguida ser substituída pelo calor do jato do engolidor de fogo, que passando rente ao meu corpo afasta os leões e permite aos acrobatas entrarem na jaula pra me resgatar. E enquanto eles pulam e me arremessam de um lado a outro como se eu fosse mais uma peça de seus malabares eu rodo pelo picadeiro, e tonto de vertigem vejo que também rodas, carregada pelos braços musculosos dos atletas. E rodando vamos chegando ao grand finale, com bailarinas, acrobatas, trapezistas, leões, equilibristas, motocicletas, mulheres barbadas, caminhões gigantes, mágicos, cachorros amestrados e palhaços girando infernalmente sob a lona colorida para o delírio da platéia. E tenho a impressão de que enquanto somos arrastados pelo cortejo ainda gritas algo contra mim, mas já não faz diferença, porque o espetáculo não para, porque ninguém nos enxerga, porque enquanto rodamos e nos odiamos o público inteiro apenas aplaude loucamente o enorme circo armado ao nosso redor, ao som da marcha nupcial, sem sequer tomar conhecimento de que existimos.