segunda-feira, dezembro 05, 2011
domingo, novembro 27, 2011
antes
bater de cabeça na parede. Dormir bêbado na frente do portão de casa. Dançar balé clássico na loja de enfeites. Não dar explicações. Trepar com o fracasso até o limite do suportável. Correr sem rumo até que a terra firme acabe. Mergulhar de cabeça no Rio Guaíba. Quebrar a cara, over and over again. Primeiro com os outros batendo. Depois comigo mesmo, até o braço não aguentar mais. E só então concluir que chega. Acreditar em sonhos e pressentimentos imbecis. Ejacular contra a porta. Dar tiro nos pés dos homens e roubar as bolsas das mulheres. Enfiar o ouvido na caixa de som atrás do trítono. Perder a expectativa do dó maior. Encarar os meus próprios fantasmas. Ditar o meu próprio rumo. Ainda que qualquer um enxergue que é o caminho errado. Tatuar na testa a seta do tempo. Dar direção às coisas. Fazer a terra rodar ao contrário. Causar meus próprios acidentes. E nunca, nunca mais esperar pelos acidentes dos outros.
e depois de tudo isso, com ossos quebrados, reputação manchada, cheiro de esgoto e ficha na polícia, por fim criar coragem de encarar a pior das perguntas: por que caralho eu não fiz tudo isso antes?
e depois de tudo isso, com ossos quebrados, reputação manchada, cheiro de esgoto e ficha na polícia, por fim criar coragem de encarar a pior das perguntas: por que caralho eu não fiz tudo isso antes?
quinta-feira, outubro 27, 2011
sobre como e por que voltar
o exílio tem um jeito todo seu de acelerar o tempo. E a existência em câmera lenta da cidade natal, a mesma que aborrecia há alguns anos, começa a parecer frenética quando acompanhada em visitas de ocasião, ao invés de vivida dia após dia. Como se o tempo se comprimisse nos espaços entre uma ponte aérea e outra, em que eu chego a espiar um mundo que ainda chamo de meu. Mas que agora evolui fora do meu controle, num veloz estroboscópio que transforma três meses em três dias. E pela estreita fenda de luz, você descobre que bebês nasceram sem que você soubesse da gravidez, pessoas morreram sem que você soubesse da doença, casamentos acabaram sem você saber que eles tinham acontecido. E tudo naquele lugar que antes era lento, e era seu, agora acontece em uma velocidade trinta vezes maior, indiferente às suas astênicas intenções de acompanhá-lo. O que, pra alguém minimamente sensível à violência imensa da passagem do tempo (e esses tempos dos trinta e poucos sabem ser particularmente violentos), é uma porrada e tanto. E joga na cara o que o cotidiano, na sua falsa e sedutora lentidão, normalmente camufla tão bem atrás do tédio e da distração. Pra quem olha de fora, não existe camuflagem possível: o tempo mostra suas garras, e não há opção senão encará-lo. Ou então fugir, não voltar, fingir que o mundo que era seu não mais existe, e adotar um outro tempo que ainda consiga enganá-lo, em outro lugar qualquer.
àqueles incapazes disso, resta aguentar a porrada na cara.
terça-feira, setembro 20, 2011
adeus escombros
esses dias apareceu uma retroescavadeira pra revirar os meus escombros. Uma geringonça que vagarosamente começa a recolher os destroços da implosão do hospital do Fundão, do outro lado da rua do meu local de trabalho. Por enquanto, nada se nota além de um pequeno arranhão nas montanhas de destroços. Mas já é motivo de festa pra comunidade universitária: nos últimos meses, já tinha rolado festa de aniversário pros escombros, protestos raivosos, cartazes de “o entulho não é nosso”, e assim por diante. Nossa sociedade não costuma prezar muito as ruínas do que não deu certo, afinal. E a chegada das máquinas sinaliza o auspício de uma nova era no campus, de um espaço se abrindo, de um futuro sem elefantes brancos ou pernas secas.
da minha parte, porém, eu não me incluo entre os que festejam. E no meu canto, sofro quieto com a limpeza do terreno. Não um sofrimento apocalíptico. Mas uma tristeza surda, latente e real, que inegavelmente me bateu ao ver a primeira cicatriz de escavadeira nos escombros.
e não poderia ser diferente. Por um bom tempo, desde o meu primeiro encontro com aquelas pedras (e a ideia quase imediata de fazer um filme ali), aquelas pilhas de entulho malquistas e abandonadas pelo mundo civilizado se tornaram um pedaço peculiar do meu universo pessoal. Por muitos meses, elas foram ao mesmo tempo minha locação dos sonhos, meu casamento ruído, meu planeta depois do apocalipse, minha fonte de perturbação, meu ponto de reflexão. E a minha companhia do outro lado da rua enquanto eu tomava um açaí no intervalo do expediente.
e enquanto o mundo rejeitava os escombros, eu fui um dos poucos a abraçá-los como velhos amigos. Um dos seletos privilegiados a enxergarem a inegável beleza que sobra quando algo cai por terra. O que talvez seja apenas sintomático de mim mesmo. Do cara que nunca conseguiu jogar coisas fora, que corria atrás do caminhão do mensageiro da caridade pra pegar os seus papéis de volta. E que resolveu fazer um filme sobre escombros sem nem perceber que publicava um livro com a mesmíssima palavra no título, como se enxergar escombros por todos os lados fosse apenas a coisa mais natural do mundo.
sintomas à parte, porém, talvez a maior parte da tristeza não tenha nada a ver com metáforas de apego ao que cai por terra. E se explique meramente pela perda de um canto que me era querido – não por ser uma pilha de escombros, mas por ser o lugar que eu escolhi pra plantar um pequeno pedaço de mim. Como poucos outros, talvez a sacada da Espel ou a pedra de Ganchos, aquele foi um espaço que eu conheci vazio. E que eu consegui, dum jeito muito próprio, popular de sonho e desejo, criando um universo que por um tempo eu pude chamar de meu. Como calha de acontecer com esses lugares, é certo que sentirei saudades.
(ah, e antes que eu me esqueça, “Depois da Poeira” já tá em processo de montagem. Eu e o resto da equipe esperamos ter mais notícias em breve)
domingo, setembro 11, 2011
sobre padres e cineastas
numa das cenas chave do clássico “O Exorcista”, os médicos, após virarem Linda Blair do avesso com exames de imagem do cérebro sem encontrarem nada, chegam para conversar com os pais da menina. E dado que todos os exames feitos foram normais, eles sugerem à família que procurem um psiquiatra. Ao que a mãe dela prontamente responde indignada: “NÃO! A minha filha NÃO ESTÁ LOUCA! Ela está POSSUíDA PELO DEMÔNIO! Ela não precisa de um psiquiatra, ela precisa de um PADRE!
poucas histórias exemplificam tão bem o estigma social da loucura quanto essa, e volta e meia eu a uso como parábola pra conversar com alunos da área da saúde sobre a atual epidemia de diagnósticos psiquiátricos. Mas hoje eu não queria falar exatamente disso, ou pelo menos não diretamente. Hoje eu queria falar de Lars von Trier.
há uns dois anos atrás von Trier fez um filme chamado Anticristo. Que na época, ainda com o estômago meio revirado pelo final do filme, eu resumi na seguinte sinopse: “Psicólogo tenta tratar mulher com medo. Mas ela não precisa de um psicólogo. Ela precisa de um padre˜. E apesar de ter me arrependido de estragar uma noite até então agradável assistindo o filme, que lá pelas tantas descamba para um festival de violência gráfica algo gratuita, eu consegui intuir que havia algo de profundo na tensão que antecipava esse descambar, mesmo que isso acabasse se perdendo em meio a canelas perfuradas e ejaculações sangrentas.
faz mais ou menos uma hora que eu saí do cinema depois de ver o novo filme de Lars von Trier, Melancolia. E tenho a impressão de que, por mais distinto esteticamente (e inegavelmente melhor) do que o filme anterior, no fundo ele fala sobre a mesma coisa. Como no filme anterior, temos uma mulher perturbada – dessa vez não pelo medo, mas por uma melancolia aparentemente inexplicável no dia de seu casamento. E na primeira parte do filme, vemos os vários habitantes do mundo "normal" – seu marido, pais, irmã e amigos - tentando trazê-la de volta, cada um a seu jeito, sem sucesso.
as intenções daqueles que tentam trazer Justine de volta para a ordem racional do mundo, em que um casamento deveria ser um momento de celebração e felicidade, são variadas. E em um primeiro momento até conseguem surtir algum efeito transitório, já que em sua maioria são de fato sinceras. Mas mesmo as melhores intenções acabam falhando. E se falham, é em última análise pela incapacidade de compreender que a lógica de Justine não é a mesma que a deles. Até que por fim chega o momento em que a personagem adentra um estado quase catatônico em que a comunicação com o mundo humano que a cerca se torna basicamente impossível.
enquanto assistia o filme, me lembro de ter pensado nesse momento algo como “caralho, e agora como se faz pra estabelecer comunicação com uma louca dessas e trazer ela de volta? A essa altura, acho que só eletrochoque resolve.” E de fato, talvez fosse uma opção. Mas von Trier, que é mais esperto, e por isso foi fazer cinema e não psiquiatria, tinha uma ideia melhor.
e o que se vê na segunda parte do filme, com seu plot twist apocalíptico que na superfície (mas apenas na superfície) pareceria não ter nada a ver com o que tinha acontecido até então, é a lenta reaproximação de Justine com o mundo ao seu redor (personificado genialmente pela sua irmã Claire). Não porque ela se cure, mas pelo contrário, porque a ordem frágil e fictícia de festas de casamento, mordomos, café da manhã e quadros coloridos de Malevich entra em colapso, revelando o que no fundo sempre esteve por baixo, e nos aproxima. E a cena final, em que as duas irmãs se dão as mãos ao prepararem-se para o impacto, no fundo é a retomada trágica da comunicabilidade entre as duas. Como o mundo racional e organizado de Claire não foi capaz de compreender a dor de Justine, a única maneira de aproximar ambas é quebrá-lo. E estender a dor, a tristeza, e a finitude, até que ela abarque o planeta inteiro, que nos segundos antes do fim concede que a loucura é quem estava com a razão.
e firulas simbólicas à parte, a verdade que von Trier nos joga na cara é no fundo muito simples: a dor é real. O medo (no caso de Anticristo) e a melancolia (no filme homônimo) não são um degeneração da espécie, nem um defeito de neurotransmissores no cérebro. E nossas tentativas de compreendê-lo a partir da nossa míope ótica racional, com terapia cognitivo-comportamental, festas de casamento ou bons modos à mesa, estão fadadas ao fracasso – seja ele uma festa arruinada ou uma furadeira na canela. Porque no fundo o medo e a tristeza não precisam de um psiquiatra pra serem compreendidos ou curados. Eles precisam de um padre. E a silhueta de Melancolia no céu, que não representa nada além de uma antecipação do destino que no fim das contas nos espera a todos, é a lembrança de que o mesmo vale pra existência humana.
e é por essas e outras que eu não consigo deixar de dar razão a von Trier. Pra conseguir superar a incomunicabilidade daquilo que realmente dói, todos nós no fundo precisamos não de psiquiatras, mas de padres. Não de ciência, mas de fé. E na falta de deus no céu, nós que temos fé em outras coisas precisamos achar outras formas de comunhão pra que a nossa dor não nos isole do mundo. Como filmes, por exemplo. E não acreditando em padres, nos resta esperar que sejam cineastas como ele que assumam o papel de nos abençoar de vez em quando.
poucas histórias exemplificam tão bem o estigma social da loucura quanto essa, e volta e meia eu a uso como parábola pra conversar com alunos da área da saúde sobre a atual epidemia de diagnósticos psiquiátricos. Mas hoje eu não queria falar exatamente disso, ou pelo menos não diretamente. Hoje eu queria falar de Lars von Trier.
há uns dois anos atrás von Trier fez um filme chamado Anticristo. Que na época, ainda com o estômago meio revirado pelo final do filme, eu resumi na seguinte sinopse: “Psicólogo tenta tratar mulher com medo. Mas ela não precisa de um psicólogo. Ela precisa de um padre˜. E apesar de ter me arrependido de estragar uma noite até então agradável assistindo o filme, que lá pelas tantas descamba para um festival de violência gráfica algo gratuita, eu consegui intuir que havia algo de profundo na tensão que antecipava esse descambar, mesmo que isso acabasse se perdendo em meio a canelas perfuradas e ejaculações sangrentas.
faz mais ou menos uma hora que eu saí do cinema depois de ver o novo filme de Lars von Trier, Melancolia. E tenho a impressão de que, por mais distinto esteticamente (e inegavelmente melhor) do que o filme anterior, no fundo ele fala sobre a mesma coisa. Como no filme anterior, temos uma mulher perturbada – dessa vez não pelo medo, mas por uma melancolia aparentemente inexplicável no dia de seu casamento. E na primeira parte do filme, vemos os vários habitantes do mundo "normal" – seu marido, pais, irmã e amigos - tentando trazê-la de volta, cada um a seu jeito, sem sucesso.
as intenções daqueles que tentam trazer Justine de volta para a ordem racional do mundo, em que um casamento deveria ser um momento de celebração e felicidade, são variadas. E em um primeiro momento até conseguem surtir algum efeito transitório, já que em sua maioria são de fato sinceras. Mas mesmo as melhores intenções acabam falhando. E se falham, é em última análise pela incapacidade de compreender que a lógica de Justine não é a mesma que a deles. Até que por fim chega o momento em que a personagem adentra um estado quase catatônico em que a comunicação com o mundo humano que a cerca se torna basicamente impossível.
enquanto assistia o filme, me lembro de ter pensado nesse momento algo como “caralho, e agora como se faz pra estabelecer comunicação com uma louca dessas e trazer ela de volta? A essa altura, acho que só eletrochoque resolve.” E de fato, talvez fosse uma opção. Mas von Trier, que é mais esperto, e por isso foi fazer cinema e não psiquiatria, tinha uma ideia melhor.
e o que se vê na segunda parte do filme, com seu plot twist apocalíptico que na superfície (mas apenas na superfície) pareceria não ter nada a ver com o que tinha acontecido até então, é a lenta reaproximação de Justine com o mundo ao seu redor (personificado genialmente pela sua irmã Claire). Não porque ela se cure, mas pelo contrário, porque a ordem frágil e fictícia de festas de casamento, mordomos, café da manhã e quadros coloridos de Malevich entra em colapso, revelando o que no fundo sempre esteve por baixo, e nos aproxima. E a cena final, em que as duas irmãs se dão as mãos ao prepararem-se para o impacto, no fundo é a retomada trágica da comunicabilidade entre as duas. Como o mundo racional e organizado de Claire não foi capaz de compreender a dor de Justine, a única maneira de aproximar ambas é quebrá-lo. E estender a dor, a tristeza, e a finitude, até que ela abarque o planeta inteiro, que nos segundos antes do fim concede que a loucura é quem estava com a razão.
e firulas simbólicas à parte, a verdade que von Trier nos joga na cara é no fundo muito simples: a dor é real. O medo (no caso de Anticristo) e a melancolia (no filme homônimo) não são um degeneração da espécie, nem um defeito de neurotransmissores no cérebro. E nossas tentativas de compreendê-lo a partir da nossa míope ótica racional, com terapia cognitivo-comportamental, festas de casamento ou bons modos à mesa, estão fadadas ao fracasso – seja ele uma festa arruinada ou uma furadeira na canela. Porque no fundo o medo e a tristeza não precisam de um psiquiatra pra serem compreendidos ou curados. Eles precisam de um padre. E a silhueta de Melancolia no céu, que não representa nada além de uma antecipação do destino que no fim das contas nos espera a todos, é a lembrança de que o mesmo vale pra existência humana.
e é por essas e outras que eu não consigo deixar de dar razão a von Trier. Pra conseguir superar a incomunicabilidade daquilo que realmente dói, todos nós no fundo precisamos não de psiquiatras, mas de padres. Não de ciência, mas de fé. E na falta de deus no céu, nós que temos fé em outras coisas precisamos achar outras formas de comunhão pra que a nossa dor não nos isole do mundo. Como filmes, por exemplo. E não acreditando em padres, nos resta esperar que sejam cineastas como ele que assumam o papel de nos abençoar de vez em quando.
sexta-feira, setembro 09, 2011
o coração das trevas
quarta-feira, feriado de 7 de setembro no Rio de Janeiro. Um desses raros e preciosos dias de sol de inverno em que não faz calor demais, no qual se poderia ficar a tarde toda a esmo. Mas não, o dever me chama: tenho um debate na Bienal do Livro e tomo o caminho do Riocentro ao meio-dia e meio. Depois dos quarenta e cinco minutos de praxe pra chegar na Barra, essa província extra-muros da Flórida, chego na altura do autódromo e me vem a primeira surpresa.
trânsito. Bestial. Ameaçador. Completamente fora de hora e de lugar. Como se houvesse por ali um um jogo de futebol, um show de rock, uma missa evangélica. Mas não. O que havia, pasmem, era a Bienal do Livro. Não entendo a princípio. Achei que, tendo sido chamado pela Secretaria da Cultura pra um debate com autores estreantes em pleno feriado, eu certamente estaria sozinho com eles – quem iria me assistir naquele fim de mundo, afinal?
doce ilusão.
depois de meia hora quase parado, esperando pra entrar no estacionamento (pago, pelo módico preço de 15 reais), adentro os insalubres pavilhões do Riocentro pra encontrar uma horda enfurecida de famílias, casais, adolescentes, crianças, donas de casa, basicamente toda a cornucópica diversidade da espécie. E enquanto eu tento me orientar, o próximo choque vem na colada: eu olho pra frente e vejo a considerável fila que se forma em direção a um conjunto de guichês que diz “bilheteria”.
sim. Essas pessoas pagam ingresso pra entrar.
ainda meio embasbacado e desorientado, sou encontrado e levado pelo cortês rapaz que me escolta até o estande da SEC, com um convite nas mãos. Sento, espero, olho em volta, falo uma meia dúzia de coisas. E o debate corre tranquilo, poderia dizer mesmo que agradável. Mas é a única ilha tranquila em um tarde de estupor. Quando o evento termina, penso em propor às minhas companhias a ideia de ir embora instantaneamente. Mas não, não faria sentido. Depois de uma hora e meia de viagem, eu deveria pelo menos me aventurar a conhecer alguns dos níveis do inferno. Então pega a minha mão, Virgílio, segura, Berenice. Nós vamos bater.
e confesso que gostaria de dizer que nada mais me lembro. Mas algumas impressões são inapagáveis. Estandes altos como castelos e outdoors coloridos, que não consigo entender como são pagos em um país que quase não lê. Multidões em fúria e braços estendidos segurando câmeras ao redor da mesa em que o Padre Marcelo autografava seu novo livro, das onze da manhã às nove da noite. Crianças atiradas pelo chão, exaustas e talvez inconscientes. Um banheiro feminino com umas sessenta mulheres na fila. E mesmo depois de sair, ainda havia centenas de pessoas na fila do ônibus pra ir prum tal terminal de Alvorada, seja lá onde isso for, pra pegar um segundo ônibus pra casa. Não me lembro, porém, de caras felizes – com exceção de um grupo de crianças do jardim da infância ouvindo a história da Cinderela.
mas mais do que a multidão, a impossibilidade de comprar comida, o tempo que já tinha nublado quando saí, os quinze reais de estacionamento, ou a outra hora e meia de trânsito pra voltar pra Zona Sul, o desconforto maior que me fica é outro. É a pergunta inconveniente que se impõe, me perpassa, a dúvida que me devora. O que diabos essa gente toda estava fazendo lá?
porque convenhamos, isso não pode ter nada a ver com gosto pela leitura. Se essa gente toda realmente gostasse de ler, teria pego um livro (comprado na livraria, na banca de revistas, na internet, ou em tantos outros lugares possíveis) e ido ler na praia, no parque, na laje de casa, onde quer que fosse. E pronto. Parece fácil. E como leitor, eu jamais pensaria em outra opção literária pra um feriado ensolarado.
mas não. De alguma forma, alguém conseguiu vender pra essa gente a mentira de que literatura era algo muito importante pra ser tão simples. Algo que precisa de estandes enormes, multidões, grandes nomes, ingressos e estacionamento pago. Que de tão importante só caberia num espaço tão grande (e horroroso) quanto o Riocentro. E criar a ideia de que se você vier se aglomerar no meio da multidão, pagar os dez reais de ingresso, os quinze de estacionamento e comprar mais meia dúzia de livros, só então talvez você consiga se aproximar um pouco mais desse castelo kafkiano, desse mundo mágico acessível aos iniciados, que fará você e seus filhos ficarem mais inteligentes, serem mais respeitados e crescerem na vida.
gente, eu sinto dizer. Mas literatura não é isso. Aliás, eu diria que é o oposto diamétrico disso. É algo tranquilo e íntimo, que só precisa de um punhado de palavras escritas. E de um canto mais ou menos silencioso. E mil desculpas a vocês que ficaram três horas na fila do ônibus, mas vocês não vão encontrar isso num shopping. E nem em um centro de convenções lotado. E como eu bem sei que a culpa não é de vocês, e que vocês são meras vítimas de um grande embuste, tenho vontade sincera de esganar quem possa ter vendido essa mentira pra vocês.
e sim, vocês podem dizer que a Bienal tem ofertas ótimas, eventos legais, autores importantes, debates inteligentes. Tem mesmo. Mas isso tudo tem em outros lugares da cidade, do mundo, da internet, quase que todos os dias. Em lugares muito mais aprazíveis, e sempre quase sem público. Então nada disso me parece uma boa desculpa, e eu sigo sem entender como um atentado ao bom senso desses possa colar pra uma quantidade tão grande de pessoas.
mas cola. E essa é a parte triste. Porque no fundo a Bienal é sintomática de uma espécie humana que aprendeu a estabelecer com a cultura apenas mais uma relação de consumo, que em última análise é a que existe em seu repertório. Seja ele pago, como o ingresso ou o livro, ou grátis, como a foto e o autógrafo do Padre Marcelo. E o que pareceria um imenso triunfo da literatura a um observador desavisado, multidões reunidas em torno da leitura, em um país tido como iletrado, aos meus olhos parece só uma piada de mau gosto. Um sombrio enterro da palavra, atropelada pelo mercado, pela boiada, pelo ruído, pela Barra da Tijuca. E desprovida daquilo que ela tinha de mais importante: o silêncio, aquele precioso silêncio que sabia se formar em volta dela.
trânsito. Bestial. Ameaçador. Completamente fora de hora e de lugar. Como se houvesse por ali um um jogo de futebol, um show de rock, uma missa evangélica. Mas não. O que havia, pasmem, era a Bienal do Livro. Não entendo a princípio. Achei que, tendo sido chamado pela Secretaria da Cultura pra um debate com autores estreantes em pleno feriado, eu certamente estaria sozinho com eles – quem iria me assistir naquele fim de mundo, afinal?
doce ilusão.
depois de meia hora quase parado, esperando pra entrar no estacionamento (pago, pelo módico preço de 15 reais), adentro os insalubres pavilhões do Riocentro pra encontrar uma horda enfurecida de famílias, casais, adolescentes, crianças, donas de casa, basicamente toda a cornucópica diversidade da espécie. E enquanto eu tento me orientar, o próximo choque vem na colada: eu olho pra frente e vejo a considerável fila que se forma em direção a um conjunto de guichês que diz “bilheteria”.
sim. Essas pessoas pagam ingresso pra entrar.
ainda meio embasbacado e desorientado, sou encontrado e levado pelo cortês rapaz que me escolta até o estande da SEC, com um convite nas mãos. Sento, espero, olho em volta, falo uma meia dúzia de coisas. E o debate corre tranquilo, poderia dizer mesmo que agradável. Mas é a única ilha tranquila em um tarde de estupor. Quando o evento termina, penso em propor às minhas companhias a ideia de ir embora instantaneamente. Mas não, não faria sentido. Depois de uma hora e meia de viagem, eu deveria pelo menos me aventurar a conhecer alguns dos níveis do inferno. Então pega a minha mão, Virgílio, segura, Berenice. Nós vamos bater.
e confesso que gostaria de dizer que nada mais me lembro. Mas algumas impressões são inapagáveis. Estandes altos como castelos e outdoors coloridos, que não consigo entender como são pagos em um país que quase não lê. Multidões em fúria e braços estendidos segurando câmeras ao redor da mesa em que o Padre Marcelo autografava seu novo livro, das onze da manhã às nove da noite. Crianças atiradas pelo chão, exaustas e talvez inconscientes. Um banheiro feminino com umas sessenta mulheres na fila. E mesmo depois de sair, ainda havia centenas de pessoas na fila do ônibus pra ir prum tal terminal de Alvorada, seja lá onde isso for, pra pegar um segundo ônibus pra casa. Não me lembro, porém, de caras felizes – com exceção de um grupo de crianças do jardim da infância ouvindo a história da Cinderela.
mas mais do que a multidão, a impossibilidade de comprar comida, o tempo que já tinha nublado quando saí, os quinze reais de estacionamento, ou a outra hora e meia de trânsito pra voltar pra Zona Sul, o desconforto maior que me fica é outro. É a pergunta inconveniente que se impõe, me perpassa, a dúvida que me devora. O que diabos essa gente toda estava fazendo lá?
porque convenhamos, isso não pode ter nada a ver com gosto pela leitura. Se essa gente toda realmente gostasse de ler, teria pego um livro (comprado na livraria, na banca de revistas, na internet, ou em tantos outros lugares possíveis) e ido ler na praia, no parque, na laje de casa, onde quer que fosse. E pronto. Parece fácil. E como leitor, eu jamais pensaria em outra opção literária pra um feriado ensolarado.
mas não. De alguma forma, alguém conseguiu vender pra essa gente a mentira de que literatura era algo muito importante pra ser tão simples. Algo que precisa de estandes enormes, multidões, grandes nomes, ingressos e estacionamento pago. Que de tão importante só caberia num espaço tão grande (e horroroso) quanto o Riocentro. E criar a ideia de que se você vier se aglomerar no meio da multidão, pagar os dez reais de ingresso, os quinze de estacionamento e comprar mais meia dúzia de livros, só então talvez você consiga se aproximar um pouco mais desse castelo kafkiano, desse mundo mágico acessível aos iniciados, que fará você e seus filhos ficarem mais inteligentes, serem mais respeitados e crescerem na vida.
gente, eu sinto dizer. Mas literatura não é isso. Aliás, eu diria que é o oposto diamétrico disso. É algo tranquilo e íntimo, que só precisa de um punhado de palavras escritas. E de um canto mais ou menos silencioso. E mil desculpas a vocês que ficaram três horas na fila do ônibus, mas vocês não vão encontrar isso num shopping. E nem em um centro de convenções lotado. E como eu bem sei que a culpa não é de vocês, e que vocês são meras vítimas de um grande embuste, tenho vontade sincera de esganar quem possa ter vendido essa mentira pra vocês.
e sim, vocês podem dizer que a Bienal tem ofertas ótimas, eventos legais, autores importantes, debates inteligentes. Tem mesmo. Mas isso tudo tem em outros lugares da cidade, do mundo, da internet, quase que todos os dias. Em lugares muito mais aprazíveis, e sempre quase sem público. Então nada disso me parece uma boa desculpa, e eu sigo sem entender como um atentado ao bom senso desses possa colar pra uma quantidade tão grande de pessoas.
mas cola. E essa é a parte triste. Porque no fundo a Bienal é sintomática de uma espécie humana que aprendeu a estabelecer com a cultura apenas mais uma relação de consumo, que em última análise é a que existe em seu repertório. Seja ele pago, como o ingresso ou o livro, ou grátis, como a foto e o autógrafo do Padre Marcelo. E o que pareceria um imenso triunfo da literatura a um observador desavisado, multidões reunidas em torno da leitura, em um país tido como iletrado, aos meus olhos parece só uma piada de mau gosto. Um sombrio enterro da palavra, atropelada pelo mercado, pela boiada, pelo ruído, pela Barra da Tijuca. E desprovida daquilo que ela tinha de mais importante: o silêncio, aquele precioso silêncio que sabia se formar em volta dela.
segunda-feira, setembro 05, 2011
feriadão no riocentro
quando me convidaram pela primeira vez prum debate na Bienal do Livro aqui do Rio, a ser realizado às duas da tarde de um feriado no meio da semana, minha primeira reação foi "putz, dá até vergonha de convidar gente pra uma roubada dessas". Tipo, quem diabos se deslocaria até o Riocentro no meio da tarde do feriado pra ver uma exposição de livros? Se a Feira do Livro de Porto Alegre já se torna frequentemente o inferno na terra, mesmo acontecendo num dos lugares mais aprazíveis da cidade, imagina um evento literário que acontece num centro de convenções na Barra da Tijuca (parte integrante do município de Miami, FL).
mas aí sei lá, fui comentando a ideia com as pessoas e fui ouvindo comentários como "puxa, que legal" (?), "caralho, vai estar cheio pra burro no feriado" (??) e, "puxa, eu tava mesmo pensando em ir" (???). E olhando a programação da Bienal, aparentemente o evento de fato tem lá o seu peso. Então sei lá, tô quase aceitando a ideia de que pode ser legal. E que talvez até mesmo venha a ser. Mesmo sendo na Barra. E mesmo sem que eu consiga entender nada disso.
sendo assim, tá feito o convite. A mesa rola no dia 07/09 (4a feira) às 14h, no estande da SEC-RJ (Pavilhão Azul, número 13), se chama "Contos e Outras Novelas" e, além de mim, conta com a participação de Alexandre Marinho e Delano Valentim, figuras com quem eu estou bastante curioso pra conversar melhor (pra quem quiser, aqui tá a programação do resto do evento da SEC). Até porque além de mim, certamente a Bienal deve ter outros atrativos suficientes pra ocupar uma tarde. Aos bravos aventureiros que lá chegarem, sua presença será mais do que bem vinda.
e se fizer sol, prometo fazer o melhor que der pra competir com a praia.
mas aí sei lá, fui comentando a ideia com as pessoas e fui ouvindo comentários como "puxa, que legal" (?), "caralho, vai estar cheio pra burro no feriado" (??) e, "puxa, eu tava mesmo pensando em ir" (???). E olhando a programação da Bienal, aparentemente o evento de fato tem lá o seu peso. Então sei lá, tô quase aceitando a ideia de que pode ser legal. E que talvez até mesmo venha a ser. Mesmo sendo na Barra. E mesmo sem que eu consiga entender nada disso.
sendo assim, tá feito o convite. A mesa rola no dia 07/09 (4a feira) às 14h, no estande da SEC-RJ (Pavilhão Azul, número 13), se chama "Contos e Outras Novelas" e, além de mim, conta com a participação de Alexandre Marinho e Delano Valentim, figuras com quem eu estou bastante curioso pra conversar melhor (pra quem quiser, aqui tá a programação do resto do evento da SEC). Até porque além de mim, certamente a Bienal deve ter outros atrativos suficientes pra ocupar uma tarde. Aos bravos aventureiros que lá chegarem, sua presença será mais do que bem vinda.
e se fizer sol, prometo fazer o melhor que der pra competir com a praia.
sábado, agosto 27, 2011
o ódio que nos une
em primeiro lugar, não se aflijam: eu já superei o bombástico episódio da minha recente excomunhão (vide post abaixo) e posterior reincorporação no rebanho de deus. Ainda que esse troço de lavar a boca em sangue de cordeiro não tenha feito muito bem pro meu hálito.
mesmo que minha danação eterna tenha sido revogada, no entanto, uma coisa segue me chamando a atenção. Tudo bem que o pastor não goste de ser associado com alguém que fala coisas como ”porra” e “caralho” e alerte os seus seguidores de que eu não sou ele - eu faria o mesmo se alguém me confundisse com um pastor. Mas será que não tinha como fazer isso sem fazer com que eu automaticamente me transformasse no diabo? Tipo assim, eu não poderia ter sido simplesmente definido de forma um pouco mais neutra: um outro qualquer, um ateu irrelevante, um desbocado crônico, ou algo do gênero?
enfim, aparentemente não. Ao que parece, o diferente do Senhor parece ser automaticamente classificado como vindo do demônio por essas paradas, num dualismo que infelizmente permeia boa parte das religiões organizadas do mundo. O que me faz pensar que talvez tenha alguma razão profunda pra esse tipo de coisa. É esquisito, mas parece que qualquer movimento de massa, seja uma religião, um partido político ou uma torcida de futebol, sempre tem que ter um inimigo. Os talibãs precisam dos americanos, os judeus precisam dos palestinos, os gremistas dos colorados, os croatas dos sérvios, os petistas do PSDB, os crentes do capeta. E sei lá, isso parece recorrente demais pra ser mera coincidência.
talvez porque se opor a algo em comum, no fundo, seja uma das formas mais básicas de identificação entre um grupo de pessoas. Afinal, é muito mais fácil encontrar diferenças em comum do que semelhanças verdadeiras entre as pessoas. Se eu penso A e você pensa B, podemos discordar em quase tudo – mas haveremos de convir que C está errado. Pra juntar As e Bs, portanto, nada melhor do que usar um grito de ordem como “C é um idiota” (ou, opcionalmente, "C está possuído pelo demônio"). E provavelmente por isso encontrar um vilão sempre foi a forma mais simples de unir as pessoas em torno de uma causa ou manipulá-las pra um fim – e não é a toa, afinal, que qualquer movimento revolucionário geralmente só consegue manter a coesão até que o inimigo a ser derrubado cai. Depois disso, começa o quebra-pau feio, e os jacobinos e girondinos e trotskistas e stalinistas e xiitas e sunitas se pegam no pau até a morte.
enfim, no fundo a verdade é que a assimetria fundamental entre a facilidade da diferença e a aridez da semelhança parece ter raízes profundamente entranhadas na estrutura do mundo – dentro da própria lógica, é muito mais fácil provar que duas coisas são diferentes (basta apontar uma única diferença) do que argumentar que ambas são iguais (já que uma única diferença falsificaria a afirmação), um fato que deve ser familiar pra quem trabalha com estatística ou metodologia científica em geral. E parando pra pensar, talvez essa assimetria explique bastante coisa sobre o mundo. E se você, como eu, é do tipo que solta foguetes quando o time adversário perde pro campeão congolês, vai haver de concordar que alguma razão existe pra isso.
moral da história: você quer manter seu rebanho unido? Encontre um inimigo comum. Aparentemente, tem funcionado pros pastores mundo afora. O que surpreende é que até mesmo um escritor pé-rapado como eu seja candidato a demônio. Mas enfim, todo mundo está sujeito a virar bode expiatório de vez em quando.
ou, alternativamente, talvez meu xará pastor tenha razão, e em breve eu comece a girar o pescoço e lançar jatos de vômito verde. O futuro dirá quem estava certo.
mesmo que minha danação eterna tenha sido revogada, no entanto, uma coisa segue me chamando a atenção. Tudo bem que o pastor não goste de ser associado com alguém que fala coisas como ”porra” e “caralho” e alerte os seus seguidores de que eu não sou ele - eu faria o mesmo se alguém me confundisse com um pastor. Mas será que não tinha como fazer isso sem fazer com que eu automaticamente me transformasse no diabo? Tipo assim, eu não poderia ter sido simplesmente definido de forma um pouco mais neutra: um outro qualquer, um ateu irrelevante, um desbocado crônico, ou algo do gênero?
enfim, aparentemente não. Ao que parece, o diferente do Senhor parece ser automaticamente classificado como vindo do demônio por essas paradas, num dualismo que infelizmente permeia boa parte das religiões organizadas do mundo. O que me faz pensar que talvez tenha alguma razão profunda pra esse tipo de coisa. É esquisito, mas parece que qualquer movimento de massa, seja uma religião, um partido político ou uma torcida de futebol, sempre tem que ter um inimigo. Os talibãs precisam dos americanos, os judeus precisam dos palestinos, os gremistas dos colorados, os croatas dos sérvios, os petistas do PSDB, os crentes do capeta. E sei lá, isso parece recorrente demais pra ser mera coincidência.
talvez porque se opor a algo em comum, no fundo, seja uma das formas mais básicas de identificação entre um grupo de pessoas. Afinal, é muito mais fácil encontrar diferenças em comum do que semelhanças verdadeiras entre as pessoas. Se eu penso A e você pensa B, podemos discordar em quase tudo – mas haveremos de convir que C está errado. Pra juntar As e Bs, portanto, nada melhor do que usar um grito de ordem como “C é um idiota” (ou, opcionalmente, "C está possuído pelo demônio"). E provavelmente por isso encontrar um vilão sempre foi a forma mais simples de unir as pessoas em torno de uma causa ou manipulá-las pra um fim – e não é a toa, afinal, que qualquer movimento revolucionário geralmente só consegue manter a coesão até que o inimigo a ser derrubado cai. Depois disso, começa o quebra-pau feio, e os jacobinos e girondinos e trotskistas e stalinistas e xiitas e sunitas se pegam no pau até a morte.
enfim, no fundo a verdade é que a assimetria fundamental entre a facilidade da diferença e a aridez da semelhança parece ter raízes profundamente entranhadas na estrutura do mundo – dentro da própria lógica, é muito mais fácil provar que duas coisas são diferentes (basta apontar uma única diferença) do que argumentar que ambas são iguais (já que uma única diferença falsificaria a afirmação), um fato que deve ser familiar pra quem trabalha com estatística ou metodologia científica em geral. E parando pra pensar, talvez essa assimetria explique bastante coisa sobre o mundo. E se você, como eu, é do tipo que solta foguetes quando o time adversário perde pro campeão congolês, vai haver de concordar que alguma razão existe pra isso.
moral da história: você quer manter seu rebanho unido? Encontre um inimigo comum. Aparentemente, tem funcionado pros pastores mundo afora. O que surpreende é que até mesmo um escritor pé-rapado como eu seja candidato a demônio. Mas enfim, todo mundo está sujeito a virar bode expiatório de vez em quando.
ou, alternativamente, talvez meu xará pastor tenha razão, e em breve eu comece a girar o pescoço e lançar jatos de vômito verde. O futuro dirá quem estava certo.
quinta-feira, agosto 11, 2011
possuído!
minha mais recente acusação de possessão demoníaca, cortesia do meu xará no Twitter, Pastor Olavo Amaral, depois que eu usei a palavra “caralho” em um tweet. Superestima um pouco os meus poderes, é verdade. E também durou pouco tempo, já que fui perdoado logo depois. Mas foi suficiente pra sentir um certo orgulho – nada mais fashion do que ser um escritor excomungado, afinal. Meu assessor de marketing precisa me conseguir mais oportunidades dessas.
terça-feira, julho 19, 2011
na tábua e no museu
antes tarde do que nunca, faço a mais do que merecida divulgação da exposição/retrospectiva do projeto Na Tábua, que deve estar começando a rolar nesse exato momento no Museu do Trabalho de POA (Andradas, 230) e vai até dia 21 de agosto. Pra quem nunca teve a sorte de dar de cara com os cartazes em algum boteco, o projeto do amigo e agitador cultural-mor Paulo Scott tem sido um dos projetos mais legais de divulgação literária no Brasil nos últimos tempos, tendo contado com um time de escritores e ilustradores do primeiríssimo time ao longo dos seus anos existência. E antes que eu me esqueça, o fato do meu nome estar em algum lugar do cartaz não constitui conflito de interesse algum no meu entusiasmo legítimo pela história. Estarei por lá com certeza quando passar por aí.
sábado, junho 18, 2011
do artesanato
conviver com a renúncia: aceitar a ideia de esvaziar a mente pelo dia inteiro, ignorar a sedução do ruído, deixar o espaço livre. Pra depois de horas, com sorte, escrever um punhado de frases que pareçam simples, mas que contenham em si todo o silêncio do dia. E habituar-se com o risco inerente ao artesanato, de que o tempo passado esperando a palavra possa se escoar sem que ela venha, e se transforme tão somente em preguiça e espaço. Em mais um dia perdido, mas no fundo tão dedicado ao trabalho quanto todos os outros.
quarta-feira, junho 01, 2011
tomates secos, ou o nome das coisas
do Dia Online (“Homofobia: motorista de táxi agride lésbica”).
“Pedi que [o taxista] pegasse leve na velocidade”, conta [a menina]. Ainda de acordo com seu relato, ele não respeitou e disse: “Continua fazendo essa merda aí atrás, que eu continuo aqui na frente”. Ela diz que estava apenas conversando com a namorada. Ao ouvir a resposta, a musicista retrucou: “Você quer me matar e ainda é homofóbico?”. Ele teria respondido que sim.”
não, eu não queria manifestar a minha indignação com o evento. Só achei que devia atestar uma certa perplexidade linguística. Porque convenhamos, “você quer me matar e ainda é homofóbico” parece uma frase de uma novela muito ruim. Tipo, como querer matar alguém não fosse suficiente, ele ainda é homofóbico. Caralho, que espécie de roteirista anencéfalo escreve um troço desses?
mas enfim, já dizia tio Woody, a vida não imita a arte, ela imita maus programas de TV.
ou seja, pra confusão geral da bancada evangélica, parece que a palavra “homofobia” passa por um processo rápido de demonização, pra juntar-se a coisas como “pedofilia”, “bullying” e seus amigos. Todas elas partilhando a condição de (a) serem coisas obviamente abjetas e (b) por algum motivo, precisarem ter se transformado num rótulo vagamente demoníaco pra deixarem de ser ignoradas. Porque qualquer maior de idade pode constatar que tinha neguinho que apanhava todos os dias quando era adolescente no colégio (sendo a sala de aula talvez o ecossistema mais cruel existente na natureza). Mas que na nossa época aquilo parecia uma dificuldade da vida, e só quando algum psiquiatra gringo metido a besta deu um nome oficial pro troço isso pareceu virar um foco de atenção pro público.
o que talvez seja ótimo pra chamar a atenção pra causa, claro. Mas nos força a lidar com esses diálogos de filme ruim. E com esse certo desconforto de estar adicionando mais um item na interminável lista de rótulos do mundo. Afinal, como exatamente se define que “você é homofóbico”? Listinha de critérios no DSM-IV? Algum teste genético, quem sabe? Sei lá, o conceito de homofobia sempre me pareceu um tantinho complexo e arraigado demais pelos cantos escuros da personalidade pra transformar em rótulo. Como o de homossexualidade, aliás.
mas a bem da verdade, não é nenhuma novidade que as pessoas precisem de rótulos pra sobreviver, como já dizia tio Caetano (“para os americanos branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal/Bicha é bicha, macho é macho, mulher é mulher e dinheiro é dinheiro/ E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se, concedem-se, conquistam-se direitos”). Pra não falar da ala dos doentes, vide “transtorno bipolar”, “déficit de atenção” e “intolerância a lactose” (alguém lembra desses nomes há uns vinte anos atrás?). E mesmo a rotulação demonizadora do inimigo sempre foi lugar comum em um sem número de contextos (“os comunistas”, “os neoliberais”, “os libertinos”, “os ateus”). Ainda assim, é engraçado ver ela surgir também dos setores teoricamente avançados da sociedade, que costumavam reclamar dos rótulos em primeiro lugar. Mas sei lá, acho que é pra bem. Se o mundo ficar mais simplista e tosco, mas for um lugar mais tranquilo pras namoradas se darem as mãos, provavelmente tá valendo.
mas enfim, isso tudo era só pra dar boas vindas ao rótulo de “homofóbico”. Pra que ele se sinta acolhido na sociedade e se junte a “culpado de bullying”, “portador de transtorno bipolar” e “intolerante a lactose” na ala dos tomates secos verbais: coisas das quais ninguém tinha ouvido falar há meia dúzia de anos atrás, mas que subitamente entraram na moda e agora são quase impossíveis de tirar do meio da sua comida. Mesmo que você tenha pedido sushi.
E depois dizem que escritores são uma classe desvalorizada. Puta bobagem. Pra inventar qualquer coisa, basta encontrar um bom nome. As máquinas de zeros e uns que me perdoem, mas a língua ainda constrói o mundo.
“Pedi que [o taxista] pegasse leve na velocidade”, conta [a menina]. Ainda de acordo com seu relato, ele não respeitou e disse: “Continua fazendo essa merda aí atrás, que eu continuo aqui na frente”. Ela diz que estava apenas conversando com a namorada. Ao ouvir a resposta, a musicista retrucou: “Você quer me matar e ainda é homofóbico?”. Ele teria respondido que sim.”
não, eu não queria manifestar a minha indignação com o evento. Só achei que devia atestar uma certa perplexidade linguística. Porque convenhamos, “você quer me matar e ainda é homofóbico” parece uma frase de uma novela muito ruim. Tipo, como querer matar alguém não fosse suficiente, ele ainda é homofóbico. Caralho, que espécie de roteirista anencéfalo escreve um troço desses?
mas enfim, já dizia tio Woody, a vida não imita a arte, ela imita maus programas de TV.
ou seja, pra confusão geral da bancada evangélica, parece que a palavra “homofobia” passa por um processo rápido de demonização, pra juntar-se a coisas como “pedofilia”, “bullying” e seus amigos. Todas elas partilhando a condição de (a) serem coisas obviamente abjetas e (b) por algum motivo, precisarem ter se transformado num rótulo vagamente demoníaco pra deixarem de ser ignoradas. Porque qualquer maior de idade pode constatar que tinha neguinho que apanhava todos os dias quando era adolescente no colégio (sendo a sala de aula talvez o ecossistema mais cruel existente na natureza). Mas que na nossa época aquilo parecia uma dificuldade da vida, e só quando algum psiquiatra gringo metido a besta deu um nome oficial pro troço isso pareceu virar um foco de atenção pro público.
o que talvez seja ótimo pra chamar a atenção pra causa, claro. Mas nos força a lidar com esses diálogos de filme ruim. E com esse certo desconforto de estar adicionando mais um item na interminável lista de rótulos do mundo. Afinal, como exatamente se define que “você é homofóbico”? Listinha de critérios no DSM-IV? Algum teste genético, quem sabe? Sei lá, o conceito de homofobia sempre me pareceu um tantinho complexo e arraigado demais pelos cantos escuros da personalidade pra transformar em rótulo. Como o de homossexualidade, aliás.
mas a bem da verdade, não é nenhuma novidade que as pessoas precisem de rótulos pra sobreviver, como já dizia tio Caetano (“para os americanos branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal/Bicha é bicha, macho é macho, mulher é mulher e dinheiro é dinheiro/ E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se, concedem-se, conquistam-se direitos”). Pra não falar da ala dos doentes, vide “transtorno bipolar”, “déficit de atenção” e “intolerância a lactose” (alguém lembra desses nomes há uns vinte anos atrás?). E mesmo a rotulação demonizadora do inimigo sempre foi lugar comum em um sem número de contextos (“os comunistas”, “os neoliberais”, “os libertinos”, “os ateus”). Ainda assim, é engraçado ver ela surgir também dos setores teoricamente avançados da sociedade, que costumavam reclamar dos rótulos em primeiro lugar. Mas sei lá, acho que é pra bem. Se o mundo ficar mais simplista e tosco, mas for um lugar mais tranquilo pras namoradas se darem as mãos, provavelmente tá valendo.
mas enfim, isso tudo era só pra dar boas vindas ao rótulo de “homofóbico”. Pra que ele se sinta acolhido na sociedade e se junte a “culpado de bullying”, “portador de transtorno bipolar” e “intolerante a lactose” na ala dos tomates secos verbais: coisas das quais ninguém tinha ouvido falar há meia dúzia de anos atrás, mas que subitamente entraram na moda e agora são quase impossíveis de tirar do meio da sua comida. Mesmo que você tenha pedido sushi.
E depois dizem que escritores são uma classe desvalorizada. Puta bobagem. Pra inventar qualquer coisa, basta encontrar um bom nome. As máquinas de zeros e uns que me perdoem, mas a língua ainda constrói o mundo.
domingo, maio 22, 2011
para a Espel
não existe silêncio quando se está sozinho. O ruído interno sem ninguém pra interromper é um arranha-céus em obras dentro da minha cabeça. E isso por si só, somado com a inquietação da falta de alguém, impede qualquer possibilidade de paz.
estar acompanhado, por outro lado, tampouco traz silêncio. Estar junto com alguém é uma experiência intensa e uma demanda constante. E precisar falar, responder, estar atento e corresponder ao que o outro procura é um diálogo interminável do qual não se descansa.
então talvez a única situação onde eu consiga ficar em paz seja com muita gente em volta. Minha mãe nunca entendeu porque eu tinha que levar quinze pessoas pra praia ao invés de cinco. Ou porque qualquer festa lá em casa com menos de cinquenta pessoas parecia um fracasso. E eu mesmo por um tempo acreditei que de fato fosse vaidade, alguma ânsia boba de popularidade a ser superada.
mas nesse fim de tarde pós-festa, em que o dia acaba lento do outro lado da enseada, eu considero a possibilidade de que a razão seja outra. De que ter gente o suficiente em volta talvez seja a única maneira de desligar o fluxo e não pensar em nada. Porque depois dos convites feitos, da cerveja no gelo, da porta aberta, eu posso suavemente ficar no meu canto e me tornar dispensável. Sem ter que prestar contas a ninguém. E sem ter que aturar a mim mesmo. Porque a companhia ao meu redor é grande e querida. E porque ela deixa de precisar de mim. E sobramos então eu e o mundo, terno e indiferente, sem nenhum pensamento ou compromisso se interpondo entre nós.
meu único silêncio é a multidão.
segunda-feira, maio 02, 2011
sábado, abril 30, 2011
autodivulgação gratuita (e abrupta) (mcxviii)
esse domingo (dia 1º de maio) tem lançamento da coletânea da última Festipoa Literária no Pé Palito Bar (João Alfredo, 577, Cidade Baixa) às 20h30, intitulada "O Melhor da Festa 3". Como bom participante da festa, contribuo com um conto inédito.
e afora isso, os eventos rolam até o final da semana que vem, com muita coisa legal e amigos queridos do mundo literário de Porto Alegre (e alhures) falando, discutindo, debatendo, declamando e tomando cerveja (veja a programação aqui) - e com o livro à venda na maior parte deles, suponho. Não estarei por aí pra aproveitar desta vez, mas compareçam por mim.
e afora isso, os eventos rolam até o final da semana que vem, com muita coisa legal e amigos queridos do mundo literário de Porto Alegre (e alhures) falando, discutindo, debatendo, declamando e tomando cerveja (veja a programação aqui) - e com o livro à venda na maior parte deles, suponho. Não estarei por aí pra aproveitar desta vez, mas compareçam por mim.
quinta-feira, abril 07, 2011
teoria musical
segunda-feira, março 14, 2011
você, um artista
se você fizer um filme e ninguém assistir, isso não faz de você um artista.
do mesmo modo, se você fizer um filme e conseguir que ele passe num festival de cinema alternativo, numa sessão no meio da tarde de um dia de semana em que não mais que uma meia dúzia de pessoas vão chegar a assistir, isso também não chega a fazer de você um artista.
por outro lado, se você alardear pra não sei quantas centenas de pessoas via facebook, twitter, blogs e congêneres que seu filme está passando no CCBB, mesmo que nenhuma delas vá assistir, pelo menos uma parte razoável delas vai saber que você está fazendo cinema. Provavelmente uns tantos farão perguntas. Talvez alguns até comecem a apresentá-lo como cineasta. E paradoxalmente, num mundo em que todos os outros critérios caíram por terra, é justamente isso que acaba fazendo de você um artista. Pelo menos aos olhos dos outros.
vai entender.
feito o preâmbulo, era só pra dizer que “Um Filme Brasileiro”, minha pequena pílula cinematográfico-conceitual agora elevada à categoria de clássico, tá passando em uma das sessões retrospectivas da 10ª Mostra do Filme Livre, evento massa que tá rolando nos CCBBs do Rio e de São Paulo nas próximas semanas. O filme passa nos dias 25/03 (RJ) e 27/03 (SP) às 16h, mas tem bastante outras coisas legais na mostra (inclusive o Ainda Orangotangos, no qual também fiz uma pontinha). Vale a pena conferir o programa.
e pra quem não puder ir, o filme também tá no youtube, by the way – é só seguir o link no canto superior direito desse blog. Mas isso já não tem a mesma graça. E nem vai fazer de mim um artista.
novamente, vai entender.
do mesmo modo, se você fizer um filme e conseguir que ele passe num festival de cinema alternativo, numa sessão no meio da tarde de um dia de semana em que não mais que uma meia dúzia de pessoas vão chegar a assistir, isso também não chega a fazer de você um artista.
por outro lado, se você alardear pra não sei quantas centenas de pessoas via facebook, twitter, blogs e congêneres que seu filme está passando no CCBB, mesmo que nenhuma delas vá assistir, pelo menos uma parte razoável delas vai saber que você está fazendo cinema. Provavelmente uns tantos farão perguntas. Talvez alguns até comecem a apresentá-lo como cineasta. E paradoxalmente, num mundo em que todos os outros critérios caíram por terra, é justamente isso que acaba fazendo de você um artista. Pelo menos aos olhos dos outros.
vai entender.
feito o preâmbulo, era só pra dizer que “Um Filme Brasileiro”, minha pequena pílula cinematográfico-conceitual agora elevada à categoria de clássico, tá passando em uma das sessões retrospectivas da 10ª Mostra do Filme Livre, evento massa que tá rolando nos CCBBs do Rio e de São Paulo nas próximas semanas. O filme passa nos dias 25/03 (RJ) e 27/03 (SP) às 16h, mas tem bastante outras coisas legais na mostra (inclusive o Ainda Orangotangos, no qual também fiz uma pontinha). Vale a pena conferir o programa.
e pra quem não puder ir, o filme também tá no youtube, by the way – é só seguir o link no canto superior direito desse blog. Mas isso já não tem a mesma graça. E nem vai fazer de mim um artista.
novamente, vai entender.
segunda-feira, março 07, 2011
segunda-feira, fevereiro 28, 2011
versinho zen-budista feito em casa (lxiii)
segunda-feira, janeiro 31, 2011
sobre por que fazer antes o que alguém já vai fazer por você
imagine o seguinte cenário: você acorda de manhã, meio de ressaca, com aquela fome de não ter jantado na noite anterior. Meio sonolento, você levanta e pensa “pois é, pelo jeito vou ter que fazer o café da manhã”. E então você chega na cozinha e descobre que a sua mulher levantou antes de você e já está terminando de fazer um lindo café da manhã pra dois, com café com leite, chocolate quente, suco de laranja, iogurte, torradas, geléia, ovos mexidos e tudo o mais que você poderia querer.
o que você faz?
(a) diz “que ótimo, meu bem, você leu os meus pensamentos. Vou aproveitar que você já fez o café pra ir botando os talheres na mesa e dando uma limpada na cozinha, OK?”
(b) suspira algo como “caralho, eu te amo” e enche ela de beijos no pescoço, aproveitando que ela está ocupada com os pratos pra dar uma esfregada básica naquele corpo indefeso inclinado sobre a pia da cozinha.
(c) pensa “senhor, eu não mereço tanto” e volta sorrateiramente para o quarto, deitando novamente pra esperar que ela lhe traga o café na cama enquanto você finge dormir e não saber de nada do que está acontecendo.
(d) precipita-se pra dentro da cozinha, abrindo à geladeira às pressas, apanhando a comida e disputando espaço na pia pra fazer o mesmo café da manhã que ela já está fazendo, simplesmente pra terminar antes dela e ter o mérito de colocá-lo na mesa antes. E fica frustrado por semanas ou meses a fio se ela por acaso conseguir servi-lo primeiro.
sinceramente, não importa muito se você simpatiza com a alternativa “a”, “b” ou “c”. O que importa é que é imensamente provável que você (assim como qualquer pessoa minimamente normal) tenha imediatamente relacionado a alternativa “d” a algum grau de psicose em estágio avançado. Certo?
ok.
agora transfira a cena pra um laboratório de pesquisa, em que você tem uma ideia que lhe parece boa, está começando a trabalhar nela, e aí subitamente fica sabendo que alguém em algum lugar do mundo está trabalhando exatamente na mesma coisa que você estava pensando em fazer, e tentando encontrar os mesmos resultados que você esperava encontrar para publicá-los.
o que você faz?
não vou enumerar as alternativas. Mas da próxima vez que você disser que faz ciência (ou seja o que for que você faz) pra fazer uma contribuição para a humanidade, e não pelos seus próprios interesses, pelo menos pense nisso.
o que você faz?
(a) diz “que ótimo, meu bem, você leu os meus pensamentos. Vou aproveitar que você já fez o café pra ir botando os talheres na mesa e dando uma limpada na cozinha, OK?”
(b) suspira algo como “caralho, eu te amo” e enche ela de beijos no pescoço, aproveitando que ela está ocupada com os pratos pra dar uma esfregada básica naquele corpo indefeso inclinado sobre a pia da cozinha.
(c) pensa “senhor, eu não mereço tanto” e volta sorrateiramente para o quarto, deitando novamente pra esperar que ela lhe traga o café na cama enquanto você finge dormir e não saber de nada do que está acontecendo.
(d) precipita-se pra dentro da cozinha, abrindo à geladeira às pressas, apanhando a comida e disputando espaço na pia pra fazer o mesmo café da manhã que ela já está fazendo, simplesmente pra terminar antes dela e ter o mérito de colocá-lo na mesa antes. E fica frustrado por semanas ou meses a fio se ela por acaso conseguir servi-lo primeiro.
sinceramente, não importa muito se você simpatiza com a alternativa “a”, “b” ou “c”. O que importa é que é imensamente provável que você (assim como qualquer pessoa minimamente normal) tenha imediatamente relacionado a alternativa “d” a algum grau de psicose em estágio avançado. Certo?
ok.
agora transfira a cena pra um laboratório de pesquisa, em que você tem uma ideia que lhe parece boa, está começando a trabalhar nela, e aí subitamente fica sabendo que alguém em algum lugar do mundo está trabalhando exatamente na mesma coisa que você estava pensando em fazer, e tentando encontrar os mesmos resultados que você esperava encontrar para publicá-los.
o que você faz?
não vou enumerar as alternativas. Mas da próxima vez que você disser que faz ciência (ou seja o que for que você faz) pra fazer uma contribuição para a humanidade, e não pelos seus próprios interesses, pelo menos pense nisso.
sábado, janeiro 22, 2011
certezas ruindo
diálogo verídico na bilheteria do cinema:
- Boa noite.
- Boa noite. Uma para "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas." (morrendo de medo do que o caixa vai pensar de quem paga pra assistir um filme com um título esdrúxulo desses)
- Às nove e cinquenta?
- (com ar de incompreensão) Não, às sete e quarenta.
- Está lotado.
- Lotado? (incrédulo) LOTADO? Nunca ninguém disse para você que FILMES TAILANDESES NÃO PODEM LOTAR UMA SALA DE CINEMA! (furioso) Que isso vai CONTRA AS LEIS MAIS FUNDAMENTAIS DO UNIVERSO? (agarrando o caixa pelo pescoço) Você não leu ESTE POST?
(obs: última fala discretamente modificada por motivos de licença poética)
não há dúvida, todas as minhas certezas andam ruindo. Estranho lugar, esse rio de janeiro.
- Boa noite.
- Boa noite. Uma para "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas." (morrendo de medo do que o caixa vai pensar de quem paga pra assistir um filme com um título esdrúxulo desses)
- Às nove e cinquenta?
- (com ar de incompreensão) Não, às sete e quarenta.
- Está lotado.
- Lotado? (incrédulo) LOTADO? Nunca ninguém disse para você que FILMES TAILANDESES NÃO PODEM LOTAR UMA SALA DE CINEMA! (furioso) Que isso vai CONTRA AS LEIS MAIS FUNDAMENTAIS DO UNIVERSO? (agarrando o caixa pelo pescoço) Você não leu ESTE POST?
(obs: última fala discretamente modificada por motivos de licença poética)
não há dúvida, todas as minhas certezas andam ruindo. Estranho lugar, esse rio de janeiro.
domingo, janeiro 16, 2011
a vida é uma sala vazia
nunca gostei muito de abarrotar minha casa de móveis. Desde o dia em que eu fui morar sozinho, minha mãe sempre tentou me empurrar mesas e armários que estavam sobrando na casa dela, mas eu geralmente fazia o que podia pra resistir à ideia. E o meu argumento era sempre mais ou menos o mesmo: e se tiver uma festa, onde vamos colocar as pessoas? O que no fundo não era assim tão verdade, porque por mais que as festas às vezes acontecessem, normalmente o pessoal acabava se aglomerando na cozinha (como em qualquer festa que se preze). Mas ao mesmo tempo era um argumento plenamente sincero: uma sala vazia sempre foi ao menos a esperança de uma festa (ou pelo menos de um punhado de amigos sentados em colchões e almofadas dispersos de improviso pelos cantos). Já uma sala cheia de móveis é... bem, só uma sala cheia de móveis.
e nesse momento peculiar, talvez o mais solto e desvinculado em uma década, eu olho pra trás e tenho a impressão de que, conscientemente ou não, eu tenho lidado com a minha vida do mesmo jeito que com a minha sala. Fugindo do jeito que posso de construir algo de que eu não vá conseguir me livrar. E mantendo o espaço aberto pra uma festa que talvez seja tão teórica e improvável quanto uma invasão dos tártaros. E cada vez mais eu me sinto capaz de enxergar isso não com remorso ou arrependimento, mas apenas com a consciência de que é inevitável. Porque mesmo que na terceira pessoa a gente seja definido pelo que constrói, a experiência da vida em primeira pessoa sempre vai ser a do espaço que se tem. E mesmo que preenchê-lo ande meio difícil nesses dias, a experiência e a inquietação do espaço aberto por si só já compõem um sentido. E têm sido a minha melhor maneira de me definir, de arranjar direção pro tempo, de encontrar um fio condutor pra narrativa dos meus dias. No fim das contas, mesmo com o apartamento menor, o espaço na sala segue sendo o único reflexo fiel do lado de dentro. O resto é só um punhado de móveis.
e nesse momento peculiar, talvez o mais solto e desvinculado em uma década, eu olho pra trás e tenho a impressão de que, conscientemente ou não, eu tenho lidado com a minha vida do mesmo jeito que com a minha sala. Fugindo do jeito que posso de construir algo de que eu não vá conseguir me livrar. E mantendo o espaço aberto pra uma festa que talvez seja tão teórica e improvável quanto uma invasão dos tártaros. E cada vez mais eu me sinto capaz de enxergar isso não com remorso ou arrependimento, mas apenas com a consciência de que é inevitável. Porque mesmo que na terceira pessoa a gente seja definido pelo que constrói, a experiência da vida em primeira pessoa sempre vai ser a do espaço que se tem. E mesmo que preenchê-lo ande meio difícil nesses dias, a experiência e a inquietação do espaço aberto por si só já compõem um sentido. E têm sido a minha melhor maneira de me definir, de arranjar direção pro tempo, de encontrar um fio condutor pra narrativa dos meus dias. No fim das contas, mesmo com o apartamento menor, o espaço na sala segue sendo o único reflexo fiel do lado de dentro. O resto é só um punhado de móveis.
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