sábado, novembro 28, 2009

cosmética da fome

esses dias voltei de carro do Fundão, ao invés de encarar o tradicional sacolejo do quatro oito cinco lotado. Era um fim de tarde, a gente ia com o ar condicionado ligado e música clássica tocando alto no som. E pela primeira vez depois de mais de um mês de Rio eu consegui reparar na poesia da Linha Vermelha. A solidão dos vendedores de água pisando o asfalto. O insólito parquinho de diversões iluminado na beira da estrada, ao lado do campo de futebol da favela. A solidão do castelinho da Fiocruz ao fundo. E a imensidão de casas de tijolo empilhadas a perder de vista, com o dia caindo e as luzes começando a se acender. Sério, por um momento pareceu lindo. E aí eu acordei do transe quando o carro empacou no engarrafamento.
do outro lado do vidro fechado, qualquer coisa vira poesia. Difícil é achar graça quando se está no palco, ao invés de na cadeira estofada da platéia.

terça-feira, novembro 24, 2009

afundado até o pescoço no conflito de interesse

mas se eu não fizer propaganda dos seres amados, vou fazer de quem? (ainda que tenha chegado meio em cima da hora dessa vez).
É sexta-feira dia 4, às 19h na Livraria Cultura de Porto Alegre (Bourbon Country). Apareçam.

segunda-feira, novembro 23, 2009

da arte como bala perdida

minha sensação ao passear na bienal do mercosul desse ano, como quase sempre, foi parecida com a de quem mora na favela quando o Comando Vermelho resolve brigar com os Amigos dos Amigos. A de ser um bystander confuso em meio a um tiroteio que não tem nada a ver comigo. E olhando em volta, devo dizer que praticamente todos os curiosos no cais do porto pareciam estar na mesma situação. A de ser um espectador assistindo um filme em húngaro, sem legendas.
não devo, não quero e não vou entrar na discussão mais do que gasta de se um monte de galhos queimados cercados por uma cortina preta em um galpão do cais do porto são arte ou não são. Os objetos são o que são. “Arte” é só um conceito que a gente cria pra entendê-los. E qualquer um que se diga artista tem pleno direito de estender o conceito pra onde bem entender.
eu só gostaria que eles pensassem pra quem eles estão falando quando o fazem.
por que, francamente, me parece que a imensa maioria da arte contemporânea, que tanto usa substantivos abstratos bonitos como “interatividade” e “diálogo” nos cartazes ao lado das obras, quase nunca interage e dialoga de fato com o público que vai vê-la. Claro, há inúmeras honrosas e geniais exceções. Mas a grande maior parte do que se vê nesses armazéns de cais do porto pelo mundo afora parece trabalhar com conceitos herméticos que se remetem a outros artistas, aos curadores, e a críticos de arte. Mas quase nunca ao público, que definitivamente não fala a mesma língua dessa gente.
o que é apenas natural. Qualquer campo da atividade humana compartilha paradigmas próprios, e não haveria porque ser diferente nas artes plásticas. Críticos, curadores e artistas estudam nos mesmos lugares, circulam pelos mesmos meios e acabam criando critérios de valor compartilhados, Nada mais normal, assim, do que artistas tentarem agradar aos curadores falando nessa linguagem própria quando submetem projetos a uma bienal. E não haveria nada de errado nisso. Não fosse o fato de quem paga a história toda é o pobre contribuinte que olha com ar perdido pra um diálogo que pra ele geralmente soa como eslovaco ou mandarim.
e me parece que o tão discutido fracasso da arte contemporânea comunicar com o indivíduo médio não é culpa nem da falta de talento dos artistas nem da falta de preparação do público. Analisando de uma perspectiva friamente capitalista, o fracasso é simplesmente esperado. Curadores distribuem grana. Artistas tem que pagar as próprias contas e querem impressionar curadores. Ambos aprenderam a mesma cartilha hermética e tem uma linguagem particular. E o cidadão médio não entra na equação em nenhum momento. Exceto na hora de pagar.
pensando dessa maneira, também parece natural que o tal cidadão comum se sinta no direito de achar aquilo tudo uma merda. Mas o establishment cultural não dá a ele sequer o direito de reclamar, sob a pena de parecer inculto e tosco. Então ele fica quieto, olhando com um ar de incompreensão. E o circo todo segue funcionando da mesma maneira.
a mesma lógica vale pra música clássica, videoarte, dança ou quase qualquer forma de arte que seja sustentada na ausência de mercado. É fácil falar mal da influência da grana na cultura, citando exemplos como blockbusters de Hollywood ou boy bands de plástico. Mas a ausência total de feedback do mercado é capaz de criar aberrações quase tão nefastas. Exceto que no caso destas não é culto e fashion reclamar. E então todos nós ficamos quietinhos enquanto o rei está nu. Mas cá pra nós, de vez em quando um pouquinho de superego mercadológico não faz mal a ninguém.
querem soluções? Por que diabos não se faz a bienal do povo? Da próxima vez, peguemos gente a esmo no centro da cidade (a esquina é democrática, afinal) pra servir de curadores. E mais do que isso, avisemos os artistas que os projetos serão escolhidos pelo público em geral (que afinal de contas é quem paga a brincadeira, porra). Artistas são espertos, ou pelo menos alguns deles são. E eu particularmente duvido que eles não se saiam com algo muito mais divertido do que apresentariam pros curadores. E que certamente precisaria de bem menos discurso enlatado e substantivos abstratos pra justificar.
querem diálogo? Então guardem os dicionários e manuais de instruções. E gritem numa língua que eu consiga escutar.

quinta-feira, novembro 19, 2009

filosofia de bar

considerando-se que (a) estar um pouco bêbado quase sempre é mais agradável do que estar muito bêbado, mas que (b) festas com gente muito bêbada quase sempre são bem mais legais do que festas com gente pouco bêbada, seria (c) embebedar-se um gesto altruísta de responsabilidade social?

quinta-feira, novembro 12, 2009

dentro do mundo, longe de mim

a cidade me encara feito um ogro, quimera dos milhões de olhares passivos que me cercam nas filas do bancos, no chão dos coletivos, atrás das bancas de suco e dos isopores de cerveja, formando a massa indistinta em que flutuam as ilhas nas quais busco superfície. Quarenta e tantos graus ao sol, botecos lotados de noite, a calçada vibra de batuque em batuque em estereótipos eufóricos: mulheres de raças estranhas dançam, machos se esfregam sôfregos e playboys americanos pulam como se pertencessem ao cenário, alheios ao risco ou gozando a intensidade que dele provém. A vida parece urgente e tênue, ônibus atravessados contra os postes, delegacias em frente aos bares, casas afundando no mangue, motoristas se xingando no sinal vermelho com os olhos ardendo de poluição e raiva, repletos da neurose que a cidade vomita junto com o cheiro da baía. Em meio a tudo isso a publicidade impera, saturada de outdoors coloridos, corpos malhados e otimismo imbecil, slogans positivistas, datas futuras e promessas de que qualquer coisa ainda possa mudar. E afundado no caos e da correria, nos curtos tempos ociosos que o trânsito me permite alcançar, eu vou sem sequer perceber consentindo que o mundo cresça, infle, fascine e abra meus olhos ao abandono, à ansiedade e ao desejo, até que ele pese demais sobre os meus ombros e eu me deixe esmagar feito um atlas vencido. Porque nessa terra de volumes máximos não existe silêncio, não existe solidão e por conseqüência não existo eu. Existe apenas cerveja, zumbido, fumaça, petiscos, maresia, gastrite, calor, cabelos brancos e todas essas coisas que de tão grudadas à pele vão me invadindo até devorar todo o espaço. E ainda assim eu sei que é apenas mais um de tantos fins do mundo como a gente conhece, mas dessa vez também é um estranho começo. Outsider de mim mesmo, eu envelheço no Rio de Janeiro, dentro do mundo e longe de mim.