terça-feira, agosto 17, 2010

quem ama castra

então o mundo anda difícil pra você. Seus relacionamentos não dão certo, seus amigos se aproveitam de você, as pessoas lhe parecem todas mesquinhas e egoístas. Seu chefe é um filho da puta, seu ex-marido a trocou por uma mulher mais nova, seus filhos adolescentes levantam a voz o tempo inteiro. A vida não facilita as coisas e a sua paciência anda o tempo todo por um fio, suas explosões e crises de choro e enxaquecas cada vez mais frequentes, o mundo sempre prestes a desabar. Então um belo dia você perde a paciência e desiste. Desiste de se relacionar com pessoas como você, cheias de desejos e anseios e vontades e dores de cabeça próprias. E decide começar de novo. Então você vai numa loja cheia de alpiste, gaiolas e ossos de plástico, com funcionários animados e sorridentes. E na vitrine você encontra uma nova companhia. Um bicho orelhudo e fofo, de pelo malhado, cujo cérebro a ciência lhe assegura que jamais vai passar de setenta e cinco gramas. E então você o leva pra casa, constrói uma caminha, e o cria desde pequeno dando reforço positivo pra todas as demonstrações de amor que ele faz por você. Faz carinho na barriga quando ele senta do seu lado, dá um biscoito quando ele traz a bolinha, fala com uma voz fofa e idiota quando ele balança o rabinho. E não hesita em dar um tapinha no rosto quando ele esfrega os genitais na sua canela, gritar com ele quando rói o papel higiênico, e encher o tapete de spray de pimenta quando ele faz cocô no meio da sala. E a rotina de carinho na barriga aqui e tapinha ali se repete por dias cada vez mais repetitivos, num ritual capaz de adestrar o mais atrofiado dos cérebros. O bichinho então cresce, e quando seus filhos resolvem sair de casa porque não aguentam mais seu mau humor constante ele se torna a sua melhor companhia, aninhado nos seus pés vestidos com pantufas em frente à televisão. Na ausência de outra alma viva na casa, você divide a comida do jantar com ele e deixa-o dormir na sua cama, e todos os dias de manhã ele lhe retribui com uma lambida agradecida no rosto. Com o tempo os almoços de família começam a rarear, os compromissos se tornam mais esparsos, e a vida abranda sem que ninguém apareça, até porque você só sai de casa pra passear com seu amiguinho. E então você começa a achar que já é hora de levá-lo pra cruzar, passa a observar com atenção as fêmeas no parque, anota o telefone das donas com quem você puxa conversa. E chega o dia que você visita uma delas, e toma um chá enquanto deixa o seu amigo se lambuzar por minutos rigorosamente controlados com uma fêmea. Tempo suficiente pra produzir algumas cópias relativamente bem feitas dele dali a alguns meses, uma das quais você levará consigo. Pra reiniciar o ciclo previsível de carinho na barriga, biscoito e bolinha, tapinha e cocô. E já chegando na velhice você se associa ao instituto nina rosa, cola um adesivo fofo da sociedade protetora dos animais no seu carro, começa a contribuir com um fundo comunitário pra alimentar os gatos de rua do bairro. Recebe em casa folhetos de propaganda dos últimos lançamentos de ração, se cadastra em fóruns de discussão de suas raças favoritas, cola o telefone do veterinário na porta da sua geladeira. E sai espalhando pras poucas pessoas com quem ainda fala, as frequentadoras daquele mesmo canto do parque, que os seus cachorros são mais fiéis e mais amorosos do que qualquer ser humano que você já tenha conhecido, e que eles nunca deixaram de lhe fazer companhia. Quando na verdade tudo o que aconteceu foi que, ao contrário das pessoas, eles simplesmente não tiveram opção.

segunda-feira, agosto 16, 2010

dois dias de inverno e uma morte gentil















o primeiro dia de inverno em um ano de rio de janeiro combina comigo. Combina com o meu jeito quieto, com os meus cabelos grisalhos, com a imobilidade do apartamento vazio. E me ajuda a conviver com uma morte lenta, quase que gentil, oferecida a mim entre sorrisos e bichos de pelúcia. E eu me dou conta que devagar vou entrando em acordo com ela, não por concordância senão por impotência em fazer algo que não seja acompanhar o fluxo do mundo. E como que em retribuição o mundo é gentil o suficiente pra acompanhar o meu luto, acinzentando o céu e derrubando os termômetros. E fazendo com que a dor vá devagar deixando de ser o peso reprimido no caminhar rápido sobre a barata ribeiro, na lágrima que escapa no banco do 485 preso no trânsito da linha vermelha. E passe a ser uma melancolia que extravasa a mim mesmo e escorre das minhas caixas de mudança abertas. Um frio discreto que invade a baía da guanabara, semeando araucárias na floresta da tijuca, pintando o calçadão da urca com flores de ipê, botando a faixa e o laço nas mãos daquele tio que fica em cima do morro. E enquanto a rua se esvazia e o mundo encolhe, começo a sentir novamente que ele possa fazer sentido, e me sinto esquisitamente feliz. Porque sinto que o frio de fora começa a substituir o de dentro, que novamente o que eu carrego em mim é o que pode me esquentar. Que se eu pegar um cobertor e um capuz eu possa quem sabe me proteger, já que o desconforto volta a viver do outro lado da epiderme. E assim abraçar dentro do casaco o que ainda me resta, manter apertado entre os braços, e com meu pequeno punhado de pedaços deitar na rede da sacada, olhar pra fora, ver o mundo. E reaprender a ficar imóvel, sabendo que agora é a vez dele se movimentar no meu lugar.