quarta-feira, janeiro 27, 2010

consideração a ser feita antes que eu comece a reclamar demais da vida

um emprego de adjunto na universidade pública por 35 anos equivale a mais ou menos 3,4 MacArthur awards. Sem contar a aposentadoria. Pra um pouco menos de liberdade e uma que outra aula pra dar de vez em quando, talvez eu tenha que admitir que não é de todo mau.

a premonição é um prato que se come frio

a antecipação premonitória da literatura (e da arte em geral) é sempre algo que me surpreende. Não é uma nem duas vezes que eu leio ou ouço algo por anos a fio, até que o sentido que se ensaiava ali por todo aquele tempo finalmente se concretiza em algo palpável. Vide a Gal jogando tudo num verso intitulado mal secreto e essas coisas assim. Mas mais estranho do que desvendar profecias alheias é às vezes sentir que o que eu mesmo escrevo tem poderes de premonição. Esse domingo resolvi meio do nada ler as primeiras (e únicas) quinze páginas de uma novela sobre um professor universitário frustrado, que eu tinha começado a escrever há mais de um ano pra logo abortar e nunca mais botar o olho. E de queixo caído constatei que, sem ter como saber de quase nada do que viria a se passar de lá pra cá, eu tinha previsto quase todo o meu momento presente, no que ele tem de melhor e pior. E no que ele tem de mais pessoal e inacessível a alguém que olhasse de fora. E mesmo que ter previsto os fatos (inclusive o não-desprezível acontecimento de virar professor) tenha sido mera adivinhação, a presciência do meu estado de espírito depois deles acontecidos é exata demais pra ser por acaso. O que talvez não seja de se surpreender. Porque ainda que sejam os fatos que determinam o rumo da vida, a nossa reação aos fatos é sempre a ficção pessoal que a gente cria pra lidar com eles. E isso talvez não seja tão diferente assim de escrever ficção. No papel ou na vida, nosso repertório de personagens possíveis é algo limitado. E quando os acontecimentos do papel por acaso vão de encontro aos da vida real, a convergência desses personagens chega a ser chocante. Mesmo pra quem escreve literatura fantástica, a vida acaba no fim das contas imitando a arte. Ainda que com um pouco menos de vacas esquartejadas e bolhas protoplásmicas.

domingo, janeiro 10, 2010

sábado, janeiro 09, 2010

fotocomposição












































por que o travesseiro insiste em cair pra direita?

quarta-feira, janeiro 06, 2010

circo armado



















quando começamos a brigar o circo já está todo armado, o público sentado esperando o espetáculo: crianças em roupas de festa, pais com cara de pouca paciência, pipoqueiros e vendedores de algodão doce disputando espaço entre as filas. E nem sei dizer de quem parte a primeira acusação, estamos os dois prestes a entrar em cena, uniformes postos, e aí começam as farpas, quem é tu pra me dizer isso, caralho?, e em resposta eu chuto as grades da jaula e digo então entra, vai!, ouvindo a vibração do metal abafar os rugidos dos leões. Mas já é tarde, a música toca forte nos alto-falantes, as portas do camarim se abrem e os membros da trupe vão saindo um a um, bailarinas rodando varinhas e palhaços correndo em coreografias destrambelhadas. E ao ouvirmos as risadas das crianças e sentirmos os empurrões atrás de nós sabemos que não temos opção senão adentrar o picadeiro, mesmo que estejas mais preocupada no momento em esmurrar minha cabeça com um fagote roubado dos meninos da banda. Então nos colocamos em fila junto aos acrobatas e agradecemos a ovação do público, enquanto eu roubo as bolas dos malabaristas e as arremesso contra o teu peito, te obrigando a buscar refúgio atrás dos halterofilistas musculosos. O palco roda à nossa volta e nos perseguimos com furor, mas nada disso parece perturbar o número dos palhaços, que correm dos esguichos de água e esbarram em nós, me jogando contra o globo da morte em que aceleras com a motocicleta apontada na minha direção. Pra minha sorte, no entanto, o mágico encapuzado e sua assistente logo aparecem pra te levar como voluntária, e eu me coloco em pé sobre os pôneis pra assistir enquanto te debates amarrada na mesa e me lanças olhares furiosos. Mas ao ver a serra se aproximar do teu corpo minha euforia vai se transformando em ansiedade, tuas pernas se separam do tronco e batem desesperadas até pararem, e conhecer o truque não me impede de me aproximar correndo, tropeçando entre os obstáculos dos cachorros amestrados, até sentir uma dor aguda no peito quando surges do fundo falso e me acertas em cheio com a barra do trapézio. E enquanto o mágico colhe os aplausos eu sou levantado do chão e balanço cada vez mais alto, tu te equilibras com graça no trapézio ao lado e nos gritamos insultos inflamados que ouvimos só no breve momento em que nos cruzamos, “...lho da put...” e já subimos novamente, “...isso de novo eu te mat...” e mais uma volta, a platéia um borrão de rostos sorridentes embaixo de nós. Até que eu não aguento a raiva e me arremesso contra ti, derrubando-nos sobre a rede de segurança pela qual rolamos até o monte de alfafa, sob o olhar apático dos elefantes. E enquanto te levantas entre as trombas eu apanho o chicote e o estalo histérico contra o chão, fazendo a manada dispersar e chamando a atenção dos assistentes do domador, que em seus maiôs cheios de penachos aparecem pra me conduzir sob intensos aplausos para a jaula dos leões. “Mas eu sou contorcionista”, grito histérico sem que ninguém ouça, cada vez mais perto do cadafalso enquanto acenas para os felinos com um bife e apontas pra minha cabeça. E ao ouvir a porta fechar atrás de mim te vejo do outro lado das grades e avanço na tua direção sem dar importância a jubas e dentes, chicoteando o chão em todas as direções num bailado espantoso, que faz os animais dispersarem e subirem pelas paredes enquanto eu comprimo o corpo contra as barras de ferro pra me aproximar de ti, nós dois separados pelo metal e ainda assim conseguindo nos tocar nos excessos de gordura das coxas e barrigas salientes. E já quase vou me esquecendo da razão da briga quando de súbito a respiração úmida no meu pescoço se converte em rugido e depois em pânico, pra em seguida ser substituída pelo calor do jato do engolidor de fogo, que passando rente ao meu corpo afasta os leões e permite aos acrobatas entrarem na jaula pra me resgatar. E enquanto eles pulam e me arremessam de um lado a outro como se eu fosse mais uma peça de seus malabares eu rodo pelo picadeiro, e tonto de vertigem vejo que também rodas, carregada pelos braços musculosos dos atletas. E rodando vamos chegando ao grand finale, com bailarinas, acrobatas, trapezistas, leões, equilibristas, motocicletas, mulheres barbadas, caminhões gigantes, mágicos, cachorros amestrados e palhaços girando infernalmente sob a lona colorida para o delírio da platéia. E tenho a impressão de que enquanto somos arrastados pelo cortejo ainda gritas algo contra mim, mas já não faz diferença, porque o espetáculo não para, porque ninguém nos enxerga, porque enquanto rodamos e nos odiamos o público inteiro apenas aplaude loucamente o enorme circo armado ao nosso redor, ao som da marcha nupcial, sem sequer tomar conhecimento de que existimos.