sábado, junho 18, 2011

do artesanato

conviver com a renúncia: aceitar a ideia de esvaziar a mente pelo dia inteiro, ignorar a sedução do ruído, deixar o espaço livre. Pra depois de horas, com sorte, escrever um punhado de frases que pareçam simples, mas que contenham em si todo o silêncio do dia. E habituar-se com o risco inerente ao artesanato, de que o tempo passado esperando a palavra possa se escoar sem que ela venha, e se transforme tão somente em preguiça e espaço. Em mais um dia perdido, mas no fundo tão dedicado ao trabalho quanto todos os outros.

quarta-feira, junho 01, 2011

tomates secos, ou o nome das coisas

do Dia Online (“Homofobia: motorista de táxi agride lésbica”).
Pedi que [o taxista] pegasse leve na velocidade”, conta [a menina]. Ainda de acordo com seu relato, ele não respeitou e disse: “Continua fazendo essa merda aí atrás, que eu continuo aqui na frente”. Ela diz que estava apenas conversando com a namorada. Ao ouvir a resposta, a musicista retrucou: “Você quer me matar e ainda é homofóbico?”. Ele teria respondido que sim.”
não, eu não queria manifestar a minha indignação com o evento. Só achei que devia atestar uma certa perplexidade linguística. Porque convenhamos, “você quer me matar e ainda é homofóbico” parece uma frase de uma novela muito ruim. Tipo, como querer matar alguém não fosse suficiente, ele ainda é homofóbico. Caralho, que espécie de roteirista anencéfalo escreve um troço desses?
mas enfim, já dizia tio Woody, a vida não imita a arte, ela imita maus programas de TV.
ou seja, pra confusão geral da bancada evangélica, parece que a palavra “homofobia” passa por um processo rápido de demonização, pra juntar-se a coisas como “pedofilia”, “bullying” e seus amigos. Todas elas partilhando a condição de (a) serem coisas obviamente abjetas e (b) por algum motivo, precisarem ter se transformado num rótulo vagamente demoníaco pra deixarem de ser ignoradas. Porque qualquer maior de idade pode constatar que tinha neguinho que apanhava todos os dias quando era adolescente no colégio (sendo a sala de aula talvez o ecossistema mais cruel existente na natureza). Mas que na nossa época aquilo parecia uma dificuldade da vida, e só quando algum psiquiatra gringo metido a besta deu um nome oficial pro troço isso pareceu virar um foco de atenção pro público.
o que talvez seja ótimo pra chamar a atenção pra causa, claro. Mas nos força a lidar com esses diálogos de filme ruim. E com esse certo desconforto de estar adicionando mais um item na interminável lista de rótulos do mundo. Afinal, como exatamente se define que “você é homofóbico”? Listinha de critérios no DSM-IV? Algum teste genético, quem sabe? Sei lá, o conceito de homofobia sempre me pareceu um tantinho complexo e arraigado demais pelos cantos escuros da personalidade pra transformar em rótulo. Como o de homossexualidade, aliás.
mas a bem da verdade, não é nenhuma novidade que as pessoas precisem de rótulos pra sobreviver, como já dizia tio Caetano (“para os americanos branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal/Bicha é bicha, macho é macho, mulher é mulher e dinheiro é dinheiro/ E assim ganham-se, barganham-se, perdem-se, concedem-se, conquistam-se direitos”). Pra não falar da ala dos doentes, vide “transtorno bipolar”, “déficit de atenção” e “intolerância a lactose” (alguém lembra desses nomes há uns vinte anos atrás?). E mesmo a rotulação demonizadora do inimigo sempre foi lugar comum em um sem número de contextos (“os comunistas”, “os neoliberais”, “os libertinos”, “os ateus”). Ainda assim, é engraçado ver ela surgir também dos setores teoricamente avançados da sociedade, que costumavam reclamar dos rótulos em primeiro lugar. Mas sei lá, acho que é pra bem. Se o mundo ficar mais simplista e tosco, mas for um lugar mais tranquilo pras namoradas se darem as mãos, provavelmente tá valendo.
mas enfim, isso tudo era só pra dar boas vindas ao rótulo de “homofóbico”. Pra que ele se sinta acolhido na sociedade e se junte a “culpado de bullying”, “portador de transtorno bipolar” e “intolerante a lactose” na ala dos tomates secos verbais: coisas das quais ninguém tinha ouvido falar há meia dúzia de anos atrás, mas que subitamente entraram na moda e agora são quase impossíveis de tirar do meio da sua comida. Mesmo que você tenha pedido sushi.
E depois dizem que escritores são uma classe desvalorizada. Puta bobagem. Pra inventar qualquer coisa, basta encontrar um bom nome. As máquinas de zeros e uns que me perdoem, mas a língua ainda constrói o mundo.