terça-feira, setembro 20, 2011

adeus escombros


esses dias apareceu uma retroescavadeira pra revirar os meus escombros. Uma geringonça que vagarosamente começa a recolher os destroços da implosão do hospital do Fundão, do outro lado da rua do meu local de trabalho. Por enquanto, nada se nota além de um pequeno arranhão nas montanhas de destroços. Mas já é motivo de festa pra comunidade universitária: nos últimos meses, já tinha rolado festa de aniversário pros escombros, protestos raivosos, cartazes de “o entulho não é nosso”, e assim por diante. Nossa sociedade não costuma prezar muito as ruínas do que não deu certo, afinal. E a chegada das máquinas sinaliza o auspício de uma nova era no campus, de um espaço se abrindo, de um futuro sem elefantes brancos ou pernas secas.
da minha parte, porém, eu não me incluo entre os que festejam. E no meu canto, sofro quieto com a limpeza do terreno. Não um sofrimento apocalíptico. Mas uma tristeza surda, latente e real, que inegavelmente me bateu ao ver a primeira cicatriz de escavadeira nos escombros.
e não poderia ser diferente. Por um bom tempo, desde o meu primeiro encontro com aquelas pedras (e a ideia quase imediata de fazer um filme ali), aquelas pilhas de entulho malquistas e abandonadas pelo mundo civilizado se tornaram um pedaço peculiar do meu universo pessoal. Por muitos meses, elas foram ao mesmo tempo minha locação dos sonhos, meu casamento ruído, meu planeta depois do apocalipse, minha fonte de perturbação, meu ponto de reflexão. E a minha companhia do outro lado da rua enquanto eu tomava um açaí no intervalo do expediente.
e enquanto o mundo rejeitava os escombros, eu fui um dos poucos a abraçá-los como velhos amigos. Um dos seletos privilegiados a enxergarem a inegável beleza que sobra quando algo cai por terra. O que talvez seja apenas sintomático de mim mesmo. Do cara que nunca conseguiu jogar coisas fora, que corria atrás do caminhão do mensageiro da caridade pra pegar os seus papéis de volta. E que resolveu fazer um filme sobre escombros sem nem perceber que publicava um livro com a mesmíssima palavra no título, como se enxergar escombros por todos os lados fosse apenas a coisa mais natural do mundo.
sintomas à parte, porém, talvez a maior parte da tristeza não tenha nada a ver com metáforas de apego ao que cai por terra. E se explique meramente pela perda de um canto que me era querido – não por ser uma pilha de escombros, mas por ser o lugar que eu escolhi pra plantar um pequeno pedaço de mim. Como poucos outros, talvez a sacada da Espel ou a pedra de Ganchos, aquele foi um espaço que eu conheci vazio. E que eu consegui, dum jeito muito próprio, popular de sonho e desejo, criando um universo que por um tempo eu pude chamar de meu. Como calha de acontecer com esses lugares, é certo que sentirei saudades.
(ah, e antes que eu me esqueça, “Depois da Poeira” já tá em processo de montagem. Eu e o resto da equipe esperamos ter mais notícias em breve)

domingo, setembro 11, 2011

sobre padres e cineastas

numa das cenas chave do clássico “O Exorcista”, os médicos, após virarem Linda Blair do avesso com exames de imagem do cérebro sem encontrarem nada, chegam para conversar com os pais da menina. E dado que todos os exames feitos foram normais, eles sugerem à família que procurem um psiquiatra. Ao que a mãe dela prontamente responde indignada: “NÃO! A minha filha NÃO ESTÁ LOUCA! Ela está POSSUíDA PELO DEMÔNIO! Ela não precisa de um psiquiatra, ela precisa de um PADRE!
poucas histórias exemplificam tão bem o estigma social da loucura quanto essa, e volta e meia eu a uso como parábola pra conversar com alunos da área da saúde sobre a atual epidemia de diagnósticos psiquiátricos. Mas hoje eu não queria falar exatamente disso, ou pelo menos não diretamente. Hoje eu queria falar de Lars von Trier.
há uns dois anos atrás von Trier fez um filme chamado Anticristo. Que na época, ainda com o estômago meio revirado pelo final do filme, eu resumi na seguinte sinopse: “Psicólogo tenta tratar mulher com medo. Mas ela não precisa de um psicólogo. Ela precisa de um padre˜. E apesar de ter me arrependido de estragar uma noite até então agradável assistindo o filme, que lá pelas tantas descamba para um festival de violência gráfica algo gratuita, eu consegui intuir que havia algo de profundo na tensão que antecipava esse descambar, mesmo que isso acabasse se perdendo em meio a canelas perfuradas e ejaculações sangrentas.
faz mais ou menos uma hora que eu saí do cinema depois de ver o novo filme de Lars von Trier, Melancolia. E tenho a impressão de que, por mais distinto esteticamente (e inegavelmente melhor) do que o filme anterior, no fundo ele fala sobre a mesma coisa. Como no filme anterior, temos uma mulher perturbada – dessa vez não pelo medo, mas por uma melancolia aparentemente inexplicável no dia de seu casamento. E na primeira parte do filme, vemos os vários habitantes do mundo "normal" – seu marido, pais, irmã e amigos - tentando trazê-la de volta, cada um a seu jeito, sem sucesso.
as intenções daqueles que tentam trazer Justine de volta para a ordem racional do mundo, em que um casamento deveria ser um momento de celebração e felicidade, são variadas. E em um primeiro momento até conseguem surtir algum efeito transitório, já que em sua maioria são de fato sinceras. Mas mesmo as melhores intenções acabam falhando. E se falham, é em última análise pela incapacidade de compreender que a lógica de Justine não é a mesma que a deles. Até que por fim chega o momento em que a personagem adentra um estado quase catatônico em que a comunicação com o mundo humano que a cerca se torna basicamente impossível.
enquanto assistia o filme, me lembro de ter pensado nesse momento algo como “caralho, e agora como se faz pra estabelecer comunicação com uma louca dessas e trazer ela de volta? A essa altura, acho que só eletrochoque resolve.” E de fato, talvez fosse uma opção. Mas von Trier, que é mais esperto, e por isso foi fazer cinema e não psiquiatria, tinha uma ideia melhor.
e o que se vê na segunda parte do filme, com seu plot twist apocalíptico que na superfície (mas apenas na superfície) pareceria não ter nada a ver com o que tinha acontecido até então, é a lenta reaproximação de Justine com o mundo ao seu redor (personificado genialmente pela sua irmã Claire). Não porque ela se cure, mas pelo contrário, porque a ordem frágil e fictícia de festas de casamento, mordomos, café da manhã e quadros coloridos de Malevich entra em colapso, revelando o que no fundo sempre esteve por baixo, e nos aproxima. E a cena final, em que as duas irmãs se dão as mãos ao prepararem-se para o impacto, no fundo é a retomada trágica da comunicabilidade entre as duas. Como o mundo racional e organizado de Claire não foi capaz de compreender a dor de Justine, a única maneira de aproximar ambas é quebrá-lo. E estender a dor, a tristeza, e a finitude, até que ela abarque o planeta inteiro, que nos segundos antes do fim concede que a loucura é quem estava com a razão.
e firulas simbólicas à parte, a verdade que von Trier nos joga na cara é no fundo muito simples: a dor é real. O medo (no caso de Anticristo) e a melancolia (no filme homônimo) não são um degeneração da espécie, nem um defeito de neurotransmissores no cérebro. E nossas tentativas de compreendê-lo a partir da nossa míope ótica racional, com terapia cognitivo-comportamental, festas de casamento ou bons modos à mesa, estão fadadas ao fracasso – seja ele uma festa arruinada ou uma furadeira na canela. Porque no fundo o medo e a tristeza não precisam de um psiquiatra pra serem compreendidos ou curados. Eles precisam de um padre. E a silhueta de Melancolia no céu, que não representa nada além de uma antecipação do destino que no fim das contas nos espera a todos, é a lembrança de que o mesmo vale pra existência humana.
e é por essas e outras que eu não consigo deixar de dar razão a von Trier. Pra conseguir superar a incomunicabilidade daquilo que realmente dói, todos nós no fundo precisamos não de psiquiatras, mas de padres. Não de ciência, mas de fé. E na falta de deus no céu, nós que temos fé em outras coisas precisamos achar outras formas de comunhão pra que a nossa dor não nos isole do mundo. Como filmes, por exemplo. E não acreditando em padres, nos resta esperar que sejam cineastas como ele que assumam o papel de nos abençoar de vez em quando.

sexta-feira, setembro 09, 2011

o coração das trevas

quarta-feira, feriado de 7 de setembro no Rio de Janeiro. Um desses raros e preciosos dias de sol de inverno em que não faz calor demais, no qual se poderia ficar a tarde toda a esmo. Mas não, o dever me chama: tenho um debate na Bienal do Livro e tomo o caminho do Riocentro ao meio-dia e meio. Depois dos quarenta e cinco minutos de praxe pra chegar na Barra, essa província extra-muros da Flórida, chego na altura do autódromo e me vem a primeira surpresa.
trânsito
. Bestial. Ameaçador. Completamente fora de hora e de lugar. Como se houvesse por ali um um jogo de futebol, um show de rock, uma missa evangélica. Mas não. O que havia, pasmem, era a Bienal do Livro. Não entendo a princípio. Achei que, tendo sido chamado pela Secretaria da Cultura pra um debate com autores estreantes em pleno feriado, eu certamente estaria sozinho com eles – quem iria me assistir naquele fim de mundo, afinal?
doce ilusão.
depois de meia hora quase parado, esperando pra entrar no estacionamento (pago, pelo módico preço de 15 reais), adentro os insalubres pavilhões do Riocentro pra encontrar uma horda enfurecida de famílias, casais, adolescentes, crianças, donas de casa, basicamente toda a cornucópica diversidade da espécie. E enquanto eu tento me orientar, o próximo choque vem na colada: eu olho pra frente e vejo a considerável fila que se forma em direção a um conjunto de guichês que diz “bilheteria”.
sim. Essas pessoas pagam ingresso pra entrar.
ainda meio embasbacado e desorientado, sou encontrado e levado pelo cortês rapaz que me escolta até o estande da SEC, com um convite nas mãos. Sento, espero, olho em volta, falo uma meia dúzia de coisas. E o debate corre tranquilo, poderia dizer mesmo que agradável. Mas é a única ilha tranquila em um tarde de estupor. Quando o evento termina, penso em propor às minhas companhias a ideia de ir embora instantaneamente. Mas não, não faria sentido. Depois de uma hora e meia de viagem, eu deveria pelo menos me aventurar a conhecer alguns dos níveis do inferno. Então pega a minha mão, Virgílio, segura, Berenice. Nós vamos bater.
e confesso que gostaria de dizer que nada mais me lembro. Mas algumas impressões são inapagáveis. Estandes altos como castelos e outdoors coloridos, que não consigo entender como são pagos em um país que quase não lê. Multidões em fúria e braços estendidos segurando câmeras ao redor da mesa em que o Padre Marcelo autografava seu novo livro, das onze da manhã às nove da noite. Crianças atiradas pelo chão, exaustas e talvez inconscientes. Um banheiro feminino com umas sessenta mulheres na fila. E mesmo depois de sair, ainda havia centenas de pessoas na fila do ônibus pra ir prum tal terminal de Alvorada, seja lá onde isso for, pra pegar um segundo ônibus pra casa. Não me lembro, porém, de caras felizes – com exceção de um grupo de crianças do jardim da infância ouvindo a história da Cinderela.
mas mais do que a multidão, a impossibilidade de comprar comida, o tempo que já tinha nublado quando saí, os quinze reais de estacionamento, ou a outra hora e meia de trânsito pra voltar pra Zona Sul, o desconforto maior que me fica é outro. É a pergunta inconveniente que se impõe, me perpassa, a dúvida que me devora. O que diabos essa gente toda estava fazendo lá?
porque convenhamos, isso não pode ter nada a ver com gosto pela leitura. Se essa gente toda realmente gostasse de ler, teria pego um livro (comprado na livraria, na banca de revistas, na internet, ou em tantos outros lugares possíveis) e ido ler na praia, no parque, na laje de casa, onde quer que fosse. E pronto. Parece fácil. E como leitor, eu jamais pensaria em outra opção literária pra um feriado ensolarado.
mas não. De alguma forma, alguém conseguiu vender pra essa gente a mentira de que literatura era algo muito importante pra ser tão simples. Algo que precisa de estandes enormes, multidões, grandes nomes, ingressos e estacionamento pago. Que de tão importante só caberia num espaço tão grande (e horroroso) quanto o Riocentro. E criar a ideia de que se você vier se aglomerar no meio da multidão, pagar os dez reais de ingresso, os quinze de estacionamento e comprar mais meia dúzia de livros, só então talvez você consiga se aproximar um pouco mais desse castelo kafkiano, desse mundo mágico acessível aos iniciados, que fará você e seus filhos ficarem mais inteligentes, serem mais respeitados e crescerem na vida.
gente, eu sinto dizer. Mas literatura não é isso. Aliás, eu diria que é o oposto diamétrico disso. É algo tranquilo e íntimo, que só precisa de um punhado de palavras escritas. E de um canto mais ou menos silencioso. E mil desculpas a vocês que ficaram três horas na fila do ônibus, mas vocês não vão encontrar isso num shopping. E nem em um centro de convenções lotado. E como eu bem sei que a culpa não é de vocês, e que vocês são meras vítimas de um grande embuste, tenho vontade sincera de esganar quem possa ter vendido essa mentira pra vocês.
e sim, vocês podem dizer que a Bienal tem ofertas ótimas, eventos legais, autores importantes, debates inteligentes. Tem mesmo. Mas isso tudo tem em outros lugares da cidade, do mundo, da internet, quase que todos os dias. Em lugares muito mais aprazíveis, e sempre quase sem público. Então nada disso me parece uma boa desculpa, e eu sigo sem entender como um atentado ao bom senso desses possa colar pra uma quantidade tão grande de pessoas.
mas cola. E essa é a parte triste. Porque no fundo a Bienal é sintomática de uma espécie humana que aprendeu a estabelecer com a cultura apenas mais uma relação de consumo, que em última análise é a que existe em seu repertório. Seja ele pago, como o ingresso ou o livro, ou grátis, como a foto e o autógrafo do Padre Marcelo. E o que pareceria um imenso triunfo da literatura a um observador desavisado, multidões reunidas em torno da leitura, em um país tido como iletrado, aos meus olhos parece só uma piada de mau gosto. Um sombrio enterro da palavra, atropelada pelo mercado, pela boiada, pelo ruído, pela Barra da Tijuca. E desprovida daquilo que ela tinha de mais importante: o silêncio, aquele precioso silêncio que sabia se formar em volta dela.

segunda-feira, setembro 05, 2011

feriadão no riocentro

quando me convidaram pela primeira vez prum debate na Bienal do Livro aqui do Rio, a ser realizado às duas da tarde de um feriado no meio da semana, minha primeira reação foi "putz, dá até vergonha de convidar gente pra uma roubada dessas". Tipo, quem diabos se deslocaria até o Riocentro no meio da tarde do feriado pra ver uma exposição de livros? Se a Feira do Livro de Porto Alegre já se torna frequentemente o inferno na terra, mesmo acontecendo num dos lugares mais aprazíveis da cidade, imagina um evento literário que acontece num centro de convenções na Barra da Tijuca (parte integrante do município de Miami, FL).
mas aí sei lá, fui comentando a ideia com as pessoas e fui ouvindo comentários como "puxa, que legal" (?), "caralho, vai estar cheio pra burro no feriado" (??) e, "puxa, eu tava mesmo pensando em ir" (???). E olhando a programação da Bienal, aparentemente o evento de fato tem lá o seu peso. Então sei lá, tô quase aceitando a ideia de que pode ser legal. E que talvez até mesmo venha a ser. Mesmo sendo na Barra. E mesmo sem que eu consiga entender nada disso.
sendo assim, tá feito o convite. A mesa rola no dia 07/09 (4a feira) às 14h, no estande da SEC-RJ (Pavilhão Azul, número 13), se chama "Contos e Outras Novelas" e, além de mim, conta com a participação de Alexandre Marinho e Delano Valentim, figuras com quem eu estou bastante curioso pra conversar melhor (pra quem quiser, aqui tá a programação do resto do evento da SEC). Até porque além de mim, certamente a Bienal deve ter outros atrativos suficientes pra ocupar uma tarde. Aos bravos aventureiros que lá chegarem, sua presença será mais do que bem vinda.
e se fizer sol, prometo fazer o melhor que der pra competir com a praia.