quinta-feira, junho 19, 2014

o espaço

então você olha pra fora da janela e vê a luz clara, a brisa do mar, a temperatura anormalmente agradável desses dias ensolarados de outono. E quando a luz entra pelo espaço que se criou, depois que tudo em volta caiu aos pedaços, o que você encontra é um silêncio estranho ao qual você não está acostumado. Sua primeira reação a ele, como de hábito, é olhar ao redor pra tentar encontrar algum resquício do que havia antes. Você sempre foi bom em juntar pedaços, afinal, construir ficções sobre o que caiu, usar os escombros como cenário pro seu próximo filme. Mas dessa vez os fragmentos são pequenos e lacônicos, e não servem pra construir nada que não seja areia. E o que existe é apenas essa luz, amorfa na ausência de qualquer coisa de pé que possa fazer sombra. Subitamente o mundo se fez claro, amplo, vazio, solar e silencioso. E você se dá conta do quanto isso lhe inquieta. O quanto lhe remete a um tempo distante em que você mal era você, alguma tarde de sábado em frente ao computador vinte anos antes, uma espécie de preparação final antes da vida começar. A última vez em que você não tinha lugar óbvio pra correr da solidão. Porque depois disso sua capacidade besta pra construir amores na sua própria cabeça sempre deu conta do recado. E mesmo em todas as vezes que eles se quebraram você sempre foi tão bom em escutar seus próprios diálogos imaginários emanando dos escombros que nunca teve tempo pra reparar no silêncio. Mas agora você percebe que o que se acostumou a chamar de silêncio durante esse tempo todo foi apenas o ruído constante da sua própria narrativa. Um eco de um lugar imaginado, externo ao mundo, uma Ítaca perdida que no final daria sentido à odisseia, ao calvário e ao exílio. Mas agora não existe calvário nem exílio, apenas o espaço ermo de um domingo de sol. E dessa vez não há histórias óbvias pra preencher o silêncio: os códigos se perderam, as senhas foram esquecidas, e já não há como resgatar de um mundo estrangeiro as palavras que antes emanavam dele. Não porque você tenha perdido sua eloquência, mas porque qualquer palavra que você pudesse pronunciar nesse momento diria pouco sobre o que você sente. Pois o que você tem a dizer dessa vez é apenas esse enorme grito ao contrário, esse vácuo que você projeta no ar esperando que alguma voz fale de volta e se infiltre no ar que você engole, aspira, golfeja. Mas o que o mundo lhe devolve é apenas esse ar puro, quieto, quente, esse resquício de maresia no fim da tarde. E você se dá conta do desconforto estranho que isso lhe traz. Um desconforto que o faz perder o resto da semana declarando guerras contra oponentes imaginários, construindo moinhos, batendo em você mesmo e fingindo que os socos são de outra pessoa. Pra ver se a dor que isso lhe causa o convence de que existe alguém de carne e osso contra quem lutar, e lhe exime uma vez mais de enfrentar o oponente de verdade. Esse espaço vazio e enorme ao seu redor, sem narrativas pra esconder a experiência fundamental de estar sozinho. Sem construções pra encobrir a visão de um mundo duro e incompreensível que segue ali, avesso a ser explicado. Um inimigo que, ao contrário das ameaças concretas da vida, segue sendo uma verdade que você não sabe enfrentar. Pois sua força é inútil contra esse oponente desleal que não sente seus golpes, que não bate de volta, que em sua passividade esvazia o sentido da briga e escancara a sua impotência. E todas as suas estratégias falham contra o enigma perene e imóvel de uma tarde clara de domingo, que não oferece resposta nenhuma à sua fúria senão esse enorme e desmesurado silêncio.