quinta-feira, agosto 02, 2012

Oz em greve

sempre desconfiei um pouco da afirmação popular de que “todos os políticos são uns filhos da puta”. Não porque simpatize demais com eles, mas simplesmente por um certo ceticismo científico: parece uma improbabilidade estatística, afinal, que toda uma classe cometa gestos que afrontem sua própria noção de moral o tempo todo e não comporte uma única pessoa honesta.
minha ideia sempre foi um pouco oposta – da minha parte, tenho a impressão de que Malufs e Sarneys da vida acreditem de verdade que fazem a coisa certa pelo país e pela tradição que representam.  E quanto às falcatruas tão grotescas pra quem olha de fora, talvez elas simplesmente lhes pareçam naturais – uma imposição necessária ou uma recompensa justa pelo que fazem, e nada além do modus operandi da política brasileira há séculos.
com isso, minha explicação pro que parece injustificável em Brasília sempre foi a da gradual habituação ao absurdo até ele começar a passar desapercebido. O fato da classe política brasileira ter se tornado tão fechada em sua Ilha da Fantasia no cerrado, e tão distante da vida do cidadão médio, que a desonestidade se torna banal, num mundo mágico de Oz fechado em si mesmo que opera por regras próprias. E como deportação de judeus pra quem cresceu na Alemanha nazista, corrupção passa a ser apenas parte da vida.
e tudo isso, no fundo, é apenas falta de um reality check. Enquanto ninguém de fora aparecer pra dizer que o rei está nu, ele não se dará ao trabalho de vestir-se. Não por má vontade, mas simplesmente por ter esquecido de que tinha que fazê-lo.
tudo isso tem passado pela minha cabeça nos últimos dias, ao acompanhar o desenrolar da greve dos professores federais. Pra quem por acaso não estiver ciente, a classe anda em greve há mais de dois meses em nome de um aumento salarial e um plano de carreira. Da minha parte, não tinha parado de dar aula por não me sentir representado (a greve da UFRJ foi decretada numa assembleia com menos de 5% dos professores presentes, em que só quem era filiado ao sindicato podia votar). Mas acabei forçado a fazê-lo quando os alunos resolveram apoiar a greve, com reivindicações que eles não sabiam bem quais eram, e que tinham pouco a ver com a pauta da greve de fato, incluindo porcentagens do PIB pra educação, hospitais universitários e papel higiênico no banheiro. O que apenas prova que poucas pessoas servem tão bem de massa de manobra quanto estudantes universitários, mas isso é uma outra história.
mas voltando ao resumo dos fatos, dois meses depois do início da greve o governo acenou com uma proposta de aumento salarial que leva os valores da classe a valores até bem dignos pra qualquer um que olhe de fora (se você duvida, olhe eles aqui). E minha impressão quando fiquei sabendo foi “que bom, ganhei um aumento que parece justo e as aulas vão voltar”. Três semanas e duas rodadas de negociações depois, porém, eu acompanho perplexo que os sindicatos continuam se recusando a voltar às aulas. E tudo isso em nome de algo incutido na proposta que eles chamam de “desestruturação da carreira”.
sem entender muita coisa, resolvi tentar entender o que era a tal desestruturação da carreira e fui ler as posições da ANDES (o sindicato nacional que me representa) em relação à proposta original. E desde então, todos os dias me pergunto como a universidade pública possa ter virado também o mundo mágico de Oz, e como eu fui acabar dentro dele.
pra quem não tiver paciência de ler o documento inteiro (até porque ele é meio ofensivo ao bom senso), tentarei resumir a minha impressão. Existem inúmeras críticas a pontos específicos da proposta do governo, que eventualmente até são fundamentadas, como discrepâncias entre os aumentos em diferentes classes, achatamento de aposentadorias e outros itens (algumas das quais inclusive já abordadas em uma proposta posterior do governo). Mas esses detalhes não vêm ao caso agora. Porque em termos de paradigma, os dois pontos conceituais principais que mantém o sindicato em greve parecem ser os seguintes:
(a) a proposta do governo “desestrutura a carreira” por estabelecer hierarquias entre professores, com diferentes classes conforme a qualificação profissional (com doutorado vs. sem, por exemplo), e criar regras para a ascensão à classe de professor titular que envolvem um processo seletivo e limitam a porcentagem dos professores que podem chegar a essa esfera mais alta. Citando a ANDES, “todos os professores exercem a mesma atividade que é o desenvolvimento e aperfeiçoamento do ensino, da pesquisa e da extensão de forma indissociável”. Logo, “todo o professor pode chegar ao topo e que o desenvolvimento na carreira ocorra pela incidência equilibrada entre a experiência acadêmica, a formação continuada e a avaliação do trabalho docente no contexto da avaliação institucional, respeitada a autonomia universitária para definição de critérios.”
(b) condicionar a progressão na carreira a uma avaliação periódica a ser realizada pelo MEC, o que de acordo com a ANDES é um absurdo, pois faz com que “a autonomia universitária é profundamente atacada quando se remete a definição de critérios avaliativos de tantos e tão distintos percursos acadêmicos, extremamente variáveis entre áreas do conhecimento e localizações geográficas , para regulamentações gerais que serão baixadas de fora para dentro pelo governo central”, ao instituir uma “avaliação individual de cunho produtivista, objetivada em um escore de pontos, característica do paradigma gerencial.”
são palavras bonitas, com certeza. Mas se você foi convencido por elas, das duas uma: ou você nunca esteve dentro de uma universidade pública, ou você está dentro dela há tempo demais e deixou de perceber o quão fora da realidade é o seu funcionamento.
pra quem por acaso esteja no primeiro grupo, deixem eu tentar traçar um breve panorama do que consiste o trabalho de um professor universitário. Professores universitários não batem ponto, tem poucos horários fixos afora os de aula (atualmente fixados em 8 horas por semana pela Lei de Diretrizes e Bases, ainda que isso varie), e têm uma liberdade considerável pra escolherem ou inventarem projetos, temas de pesquisa e outras atividades às quais queiram dedicar seu tempo de trabalho. E é ótimo que essa liberdade exista, porque no fundo ela é o que permite a universidade possa existir enquanto espaço criativo de geração de ideias.
contanto, é claro, que as pessoas usem esse tempo e essa liberdade pra alguma coisa de útil.
no entanto, quem já frequentou uma universidade pública sabe que as tais 40 horas dependem pura e exclusivamente da boa vontade do professor. Porque na prática, afora o tempo em que você tem que estar em aula, não existe ninguém pra cobrar o que você faz no resto do tempo. E na ausência de controle externo nenhum, a verdade é que se eu, ou qualquer outro, quisesse dar as minhas duas manhãs de aula por semana e passar as outras 32 horas coçando o saco, surfando ou jogando bola de gude, nada nem ninguém me impediria. Aliás, talvez eu tivesse menos incomodação do que ao tentar trabalhar, por não estar competindo pelos recursos de ninguém.
um segundo fato inquestionável é que ninguém faz a menor ideia do que eu faço ou não em sala de aula: nem o MEC, nem a reitoria, nem o meu Instituto. O que significa que eu sou plenamente livre pra dar aula do jeito que quiser, chegar na hora que quiser, sair na hora que quiser e não prestar contas pra ninguém. E a não ser que eu incomode tanto os estudantes a ponto de gerar algum processo administrativo, o que quer que eu faça em sala de aula não vai fazer a menor diferença na minha vida, porque as avaliações deles sobre mim acabam perdidas em algum formulário que ninguém jamais vai olhar. O que significa que, pra minha carreira, dar uma aula ruim vale mais a pena do que ter o trabalho necessário pra preparar uma boa aula, já que livra tempo pra exercer atividades mais bem recompensadas.
e antes que alguém entenda errado, não quero dizer em absoluto que todo professor universitário seja vagabundo e não faça nada. Muito pelo contrário, minha impressão é que a maioria deles trabalha, cumpre e frequentemente excede de longe as tais 40 horas semanais, e assim corresponde ao que a sociedade esperaria deles. Mas ao mesmo tempo também conheci dezenas de professores, desde a época de aluno, que cumprem o seu mínimo de horas de aula e caem fora da universidade o mais rápido possível, trabalhando uns 20% ou menos daquilo para o qual são pagos. Afora os ocasionais casos escandalosos que não dão aula, não fazem mais nada, sequer aparecem na universidade e ainda assim não são demitidos, porque mandar alguém embora do serviço público é uma tarefa tão hercúlea que às vezes é mais fácil esperar que eles se aposentem.
duvido muito que qualquer pessoa que tenha passado por uma universidade pública não conheça inúmeros exemplos como os citados acima. E apesar de tudo isso, porém o sindicato afirma, estapafurdicamente, que “todos os professores exercem a mesma atividade que é o desenvolvimento e aperfeiçoamento do ensino, da pesquisa e da extensão de forma indissociável.” Uma afirmação risível  que denota claramente que ou (a) o comando nacional de greve nunca colocou os pés numa universidade ou (b) eles são hipócritas de marca maior mentindo descaradamente pra sociedade.
e o fato de haver pessoas que trabalham mais e outras que trabalham menos não significa que a universidade esteja infestada de pessoas mal-intencionadas. Mas é simplesmente uma consequência lógica de como o mundo funciona – pessoas diferentes têm motivações e competências diferentes, e é ingênuo esperar que um conjunto de milhares de pessoas sejam iguais e exerçam qualquer atividade da mesma maneira. E como em qualquer lugar, a única maneira de fazer com que todo mundo trabalhe pelo menos o mínimo que se espera, e preferencialmente o melhor possível, é cobrando de quem não trabalha e recompensando quem o faz.  Como seria mais ou menos natural em qualquer lugar do universo, exceto no sistema público brasileiro.
o que me leva naturalmente ao segundo ponto nevrálgico da posição do sindicato, que é a convicção dogmática de que professores universitários não podem ser avaliados pelo MEC, nem por ninguém de fora da universidade, porque isso feriria a “autonomia universitária”. O que, na versão do sindicato, é o conceito de que (a) a sociedade tem que pagar (e bem) os professores através do Ministério da Educação, porém (b) só os próprios professores são capazes de avaliar a si mesmos em âmbito interno e dizer o que eles mesmos têm que fazer. Ou seja, ganhamos 35 anos de salário mais aposentadoria, e nos sentimos plenamente confortáveis com o fato de não ter que prestar contas pra sociedade em momento nenhum.
contra toda a lógica, assim, a proposta da ANDES é que “todo o professor pode chegar ao topo da carreira”, sem que ninguém de fora tenha controle algum sobre isso. E que a única condição para chegar lá sejam critérios estabelecidos pelos próprios professores, dentro dos próprios departamentos, o que significa basicamente que você será avaliado pelos seus vizinhos de corredor, que por sua vez serão avaliados por você. E nenhum deles terá nada a perder se todo mundo for aprovados, já que é o MEC que vai pagar a conta mesmo. O que na prática significa que a não aprovação de progressão na universidade só ocorre em caso de hecatombe (ou de briga política feia). E que qualquer professor pode tranquilamente sentar a bunda depois de concursado e ver o salário aumentar eternamente sem grandes preocupações. Um pouco como uma empresa em que todo estagiário recebesse ao ser contratado a garantia de virar CEO. E enquanto isso, a sociedade paga a conta, sem a menor possibilidade de cobrar o investimento feito.
(note-se, aliás, que a tal “avaliação” não é sequer uma avaliação de verdade como as que existem no mundo real, que permitiriam botar pra rua alguém que não trabalha, ou ter alguém chegando pra cobrar porque raios os alunos acharam sua aula de ontem uma merda. Só significa que pra que você receba um aumento você vai ter que mostrar que fez alguma coisa ao longo de dois anos, com critérios que sequer estabelecidos estão. Mas mesmo isso parece completamente inconcebível pra quem vive no mundo mágico de Oz).
qualquer pessoa com um mínimo de bom senso que olhasse de fora diria que um sistema desses evidentemente não pode fazer sentido. Que é ridículo que alguém possa ganhar por 40 horas de trabalho e trabalhar 8, e mais ridículo ainda que esse alguém ganhe o mesmo que o outro que trabalha 60. Mas pro movimento sindical docente, que vive nesse mundo mágico em que todos são idênticos, competentes e trabalham o máximo que podem sem cobrança alguma, tratar todo mundo da mesma forma é apenas o estado natural, inevitável e justo das coisas. Algo assim como um socialismo que dispensasse a fase da ditadura do proletariado e pulasse direto pra utopia do mundo perfeito.
e naturalmente qualquer iniciativa em prol de diferenciar essas pessoas e recompensar quem trabalha é imediatamente tachada de “produtivista” e rejeitada como uma tentativa de “dividir a classe”. O que na verdade é exatamente o caso: a ideia toda é dividir quem trabalha e quem não trabalha, ou quem tem mais qualificação e quem tem menos. O estranho é que isso seja tomado como uma coisa ruim.
mas pra quem está dentro do sistema, tais convicções parecem absolutamente normais, e o que mais me apavora é pensar que muitos professores de fato acreditam nelas. Porque essa parece ser a natureza do sistema público brasileiro: um conjunto de categorias que, por falta de controle externo, lentamente absorvem a convicção de terem recebido uma graça divina via concurso que as permite serem sustentadas para o resto da vida sem prestar contas a ninguém. E por falta de alguém de fora pra lhes dar limite, acabam se transformando, cada um deles, na sua versão particular de Oz.
e ainda assim, a mesma classe fica pasma e indignada quando vê a mesma coisa acontecendo no Congresso, no Judiciário ou onde quer que seja, sem conseguir olhar pro próprio umbigo. Afinal, achar que professores podem auto-avaliar idoneamente seus próprios méritos é mais ou menos como achar que deputados podem legislar sobre os próprios salários. E não sei bem se existe algum deputado honesto em Brasília, mas se houver eu acho que devo andar me sentindo mais ou menos como ele se sente, assim como boa parte dos meus colegas que trabalha pela universidade. Me vendo dentro duma instituição à qual eu dedico boa parte do meu tempo, que considero vital pra sociedade e em cuja sobrevivência eu tenho todo o interesse. E assistindo as pessoas que representam a classe perderem o senso de realidade, a ponto de ameaçarem acabar por desmoralizá-la junto à população. Como quase toda instituição pública acaba desmoralizada no Brasil, devido a um insustentável modelo de gestão pública em que ninguém é responsabilizável por coisa alguma.
e o mais engraçado é que em toda greve que presenciei desde que eu era aluno (essa já é a quarta), o sindicato sempre quis me convencer que o real motivo da greve era “salvar a universidade pública” (ou “evitar a privatização da educação”), ainda que desde a primeira já me parecesse óbvio que eles só queriam salvar a si mesmos. Na minha humilde opinião, no entanto, se a ideia é salvar a universidade, o primeiro passo é rejeitar frontalmente uma postura ideológica que protege quem se acomoda, não recompensa quem trabalha e parece querer transformar a universidade federal em mais uma repartição pública (com todo o sentido pejorativo que o termo “repartição pública” infelizmente veio a adquirir no Brasil). E tentar construir algo que se assemelhe um pouquinho mais ao mundo lá fora, longe de Oz, em que as pessoas são responsáveis pelos seus atos, e passíveis de serem avaliadas pelo seu trabalho e criticadas pelas suas falhas. Porque a única maneira digna de pleitear um salário justo é oferecer a contrapartida de poder ser cobrado por quem o paga. Que em última análise não é o MEC, e sim todos nós, contribuintes, que somos quem acabará arcando com a conta.
e era mais ou menos isso, dei a cara pra bater. Mas tenho a impressão de que minha profissão precisa urgentemente de um tapa na cara pra acordar.