segunda-feira, dezembro 10, 2012

segunda-feira, dezembro 03, 2012

o que aprendi com o olímpico monumental

estranho nutrir uma sensação de dívida com esse tosco anel de concreto, mas é inegável que ela existe. Pois por mais chavão e piegas que seja dizê-lo, vários pedaços do que eu sei sobre a vida depois de trinta e três anos de campeonato eu aprendi por aqui. A começar pela verdades mais óbvias, e mais difíceis de aceitar: como a de que na vida às vezes se ganha, às vezes se perde, às vezes se empata (e às vezes o juiz encerra o jogo porque fica com medinho). Aprendi que o mundo é fundamentalmente injusto, que o melhor nem sempre ganha, e que de certa forma é bom que seja assim, porque senão seria beisebol. Mas também aprendi que as derrotas podem ser tão épicas e notáveis quanto as vitórias, e que passada a ressaca a convivência de ambas na memória é surpreendentemente harmoniosa. Aprendi a abraçar estranhos, e a compartilhar experiências e estados de espírito de uma forma que a vida lá fora quase nunca proporciona. Aprendi que nem derrotas nem vitórias duram pra sempre, que a cada ano a tabela do campeonato começa do zero, e que no fim das contas a vida sempre anda em círculos. Conheci o esforço hercúleo dos comentaristas esportivos em fingir que não repetem suas frases pela milésima vez, em fazer tudo parecer tão novo como no primeiro dia em que se pisa no estádio. E conheci a imensa capacidade do ser humano em de fato acreditar nisso, sentir que uma noite qualquer de quarta-feira será a última e que tudo o que já se ganhou ou vai se ganhar na vida pouco vale em relação ao que está em disputa no instante presente. Também aprendi a constância: triste ou alegre do lado de fora, eufórico ou fodido na vida, uma vez dentro do anel de concreto sempre voltam a valer as regras: os mesmos noventa minutos, os mesmos onze de cada lado, a mesma lógica inabalável do jogo. E aprendi sobre os inesquecíveis momentos em que toda essa lógica se dissolve, em que alguém apanha a bola e contraria frontalmente o fluxo natural do universo, em que sete podem ser mais que onze mesmo com um pênalti contra (ok, confesso que isso foi pela tevê). Aprendi que esses momentos raros são os que contam, que se vive oitenta e nove minutos e meio de marasmo pra ver o destino decidido em dez ou quinze segundos, por um lance genial ou por um erro bobo. Mas ainda que tudo se decida nesses instantes, no lampejo brusco de um ataque fulminante, talvez a lição mais importante que o estádio me ensinou é que a maior parte da vida é meio de campo. Zero a zeros frustrantes, toques pro lado, volantes de contenção, carrinhos escorregadios e bolas divididas. E que por mais que o destino da partida se decida em um instante, de certa forma ela é ganha ou perdida nesse meio de campo truncado. Nos tempos mortos em que nada parece acontecer, mas nos quais se urge silenciosa e imperceptivelmente a agonia ou o êxtase do que está por vir. Pois são a dedicação e a espera pacientes durante esses oitenta e nove minutos aparentemente fúteis que, de dividida em dividida, terminam por levar ao ponto em que a sorte irrompe. E esse é o grande mistério. Saio do Olímpico pela última vez graduado, um tanto mais sábio do que se aqui não tivesse pisado. E sobre o quanto a vida ainda há de ensinar pela frente, através desse estranho rito entre as quatro linhas do campo, só a Arena agora é capaz de dizer.

domingo, novembro 18, 2012

sobre o sentido das ítacas

escrever é voltar pra casa. Deixar pra trás a balbúrdia dos aeroportos, dos trens lotados, do tráfego insano de sedutoras metrópoles que partirão você em pedaços. Virar as costas para a violência e a euforia da realidade, para a força irreprimível do que não se exprime, para o raro talento do momento presente em atropelar o que um dia você chamou de identidade. E depois de atravessado pela claridade do mundo, exausto, deixar o corpo arrefecer no chão frio do chuveiro, ainda sem luz. Sem nada além da imagem em negativo na retina e as marcas vermelhas nas costas pra tentar entender o que ainda resta do lado de dentro, com o corpo liberto do sal pela água que corre. No dia seguinte, um pouco mais livre do cansaço, você revelará as fotos (armazenadas em película, sempre), e redescobrirá o que acaba de atravessar, não na sua inteireza inapreensível, mas em uma moldura particular e imóvel que, pendurada na parede, aos poucos substituirá o real por algo passível de compreensão. Uma galeria de imagens com início, meio e fim que você possa mostrar aos seus amigos depois do jantar. Um simulacro que não será mais do que uma sombra frente à luz que o originou, mas lhe dará o esqueleto necessário para que as palavras se juntem, para que a intensidade que isolava se transforme na narrativa que unifica as contas-entes de você mesmo. E com isso fará um pouco mais fácil a transição das infinitas facetas do mundo para o pouco que você é capaz de guardar no corpo, na memória, na página. Uma página em branco que, se parecer pobre, não o terá iludido, pois será ela que por fim lhe dará a viagem. Concedendo forma e limite ao que era amorfo e infinito, como forma de apreensão de uma ínfima parte da realidade, aquela que você é capaz de contar. Fazendo-o enfim livre para dar as costas ao infinito e encarar a casa redescoberta, o íntimo pedaço do universo que você é capaz de chamar de seu.

segunda-feira, novembro 05, 2012

fragmento de um dicionário de línguas imaginárias

Dentre os conceitos básicos de geometria que se podem depreender do estudo do Yualapeng, chama a atenção a ausência de referências de trajetória, como “ir”, “vir” e “voltar”. Ainda que os termos utilizados para descrever conceitos espaciais estáticos (pontos cardeais, frente e trás, esquerda e direita) lembrem os de outros idiomas da mesma raiz, quando um Yualapeng entra em movimento ele jamais dirá que está indo para algum lugar além do próprio lar. Se perguntado para onde vai, mesmo que tenha recém saído pela manhã em direção ao trabalho na roça, sua resposta será sempre “para casa” (tar awak), ou mais precisamente “para casa, passando pelo trabalho” (sik peng tar awak).” (G. Valdès, "Tratado e obra sobre o idioma Yualapeng")

sexta-feira, novembro 02, 2012

e já que o assunto é competição...

só pra constar, "Correnteza e Escombros" é um dos finalistas do Prêmio Açorianos de Literatura de 2012 na categoria conto, junto com "Enquanto Água", de Altair Martins, e "A Árvore que Falava Aramaico", de José Francisco Botelho. Prezo muito a companhia.

abrindo a porta de vez

depois de um intervalinho pra fazer charme, a Espel Pictures (no fundo, apenas mais um nome fantasia deste que vos fala) tem o prazer de anunciar que nosso primeiro curta 100% produzido dentro de casa, "A Porta do Quarto", acaba de estrear online. Mais especificamente, estamos concorrendo no Festival Curta Como Quiser, que tem exibições na internet, cinemas, televisão e voos da TAM (sério!).
o curta estará disponível de 01/11 a 01/12 nesse link no site do SundayTV, e concorre a alguns prêmios no processo.
como o festival tem uma votação popular (convenientemente medida pelo número de pessoas que apertam o botam "curtir" no site do filme, em cima da tela), seria realmente legal se os que apreciarem o filme dessem uma força e ajudem com um clique do mouse. Pra um curta realizado de forma totalmente independente (com um custo inicial de produção de uns 200 reais, dos quais metade foram gastos em pizza, e um dinheiro um pouco maior investido na pós-produção) um prêmio significa (a) a chance de recuperar o prejuízo investido e (b, e muito mais importante) a chance de poder recompensar o resto da equipe pelo trabalho, feito sem remuneração por parceiros que simplesmente acreditaram na história, porque parecia uma história que valia a pena.
e enfim, mesmo que a gente não ganhe nada, seu clique ajuda a divulgar nosso filme pra cada vez mais gente. O que no fundo é a força motriz da história toda, ainda que às vezes a gente esqueça.
o resto da programação do Festival, incluindo exibições em outros meios, está disponível aqui. No cinema, o filme passa nos Cinemarks do Shopping Higienópolis de São Paulo e Iguatemi de Campinas no dia 06/11 às 13h. Na TV, os curtas do festival passam de segunda a sexta às 16h30 e de segunda a sábado às 21h no Canal Futura, e todos os dias às 15h45 e às 21h45 no CineBrasilTV, mas não faço ideia de pra qual dia estamos agendados. No avião, nem sei se estamos realmente agendados, mas se por acaso eu calhar de entrar num voo em que o meu próprio curta apareça na TV prometo ter orgasmos múltiplos com a experiência.

sábado, setembro 22, 2012

apesar do silêncio

sigo indo, feito ilha tentando se acomodar no continente.

quinta-feira, agosto 02, 2012

Oz em greve

sempre desconfiei um pouco da afirmação popular de que “todos os políticos são uns filhos da puta”. Não porque simpatize demais com eles, mas simplesmente por um certo ceticismo científico: parece uma improbabilidade estatística, afinal, que toda uma classe cometa gestos que afrontem sua própria noção de moral o tempo todo e não comporte uma única pessoa honesta.
minha ideia sempre foi um pouco oposta – da minha parte, tenho a impressão de que Malufs e Sarneys da vida acreditem de verdade que fazem a coisa certa pelo país e pela tradição que representam.  E quanto às falcatruas tão grotescas pra quem olha de fora, talvez elas simplesmente lhes pareçam naturais – uma imposição necessária ou uma recompensa justa pelo que fazem, e nada além do modus operandi da política brasileira há séculos.
com isso, minha explicação pro que parece injustificável em Brasília sempre foi a da gradual habituação ao absurdo até ele começar a passar desapercebido. O fato da classe política brasileira ter se tornado tão fechada em sua Ilha da Fantasia no cerrado, e tão distante da vida do cidadão médio, que a desonestidade se torna banal, num mundo mágico de Oz fechado em si mesmo que opera por regras próprias. E como deportação de judeus pra quem cresceu na Alemanha nazista, corrupção passa a ser apenas parte da vida.
e tudo isso, no fundo, é apenas falta de um reality check. Enquanto ninguém de fora aparecer pra dizer que o rei está nu, ele não se dará ao trabalho de vestir-se. Não por má vontade, mas simplesmente por ter esquecido de que tinha que fazê-lo.
tudo isso tem passado pela minha cabeça nos últimos dias, ao acompanhar o desenrolar da greve dos professores federais. Pra quem por acaso não estiver ciente, a classe anda em greve há mais de dois meses em nome de um aumento salarial e um plano de carreira. Da minha parte, não tinha parado de dar aula por não me sentir representado (a greve da UFRJ foi decretada numa assembleia com menos de 5% dos professores presentes, em que só quem era filiado ao sindicato podia votar). Mas acabei forçado a fazê-lo quando os alunos resolveram apoiar a greve, com reivindicações que eles não sabiam bem quais eram, e que tinham pouco a ver com a pauta da greve de fato, incluindo porcentagens do PIB pra educação, hospitais universitários e papel higiênico no banheiro. O que apenas prova que poucas pessoas servem tão bem de massa de manobra quanto estudantes universitários, mas isso é uma outra história.
mas voltando ao resumo dos fatos, dois meses depois do início da greve o governo acenou com uma proposta de aumento salarial que leva os valores da classe a valores até bem dignos pra qualquer um que olhe de fora (se você duvida, olhe eles aqui). E minha impressão quando fiquei sabendo foi “que bom, ganhei um aumento que parece justo e as aulas vão voltar”. Três semanas e duas rodadas de negociações depois, porém, eu acompanho perplexo que os sindicatos continuam se recusando a voltar às aulas. E tudo isso em nome de algo incutido na proposta que eles chamam de “desestruturação da carreira”.
sem entender muita coisa, resolvi tentar entender o que era a tal desestruturação da carreira e fui ler as posições da ANDES (o sindicato nacional que me representa) em relação à proposta original. E desde então, todos os dias me pergunto como a universidade pública possa ter virado também o mundo mágico de Oz, e como eu fui acabar dentro dele.
pra quem não tiver paciência de ler o documento inteiro (até porque ele é meio ofensivo ao bom senso), tentarei resumir a minha impressão. Existem inúmeras críticas a pontos específicos da proposta do governo, que eventualmente até são fundamentadas, como discrepâncias entre os aumentos em diferentes classes, achatamento de aposentadorias e outros itens (algumas das quais inclusive já abordadas em uma proposta posterior do governo). Mas esses detalhes não vêm ao caso agora. Porque em termos de paradigma, os dois pontos conceituais principais que mantém o sindicato em greve parecem ser os seguintes:
(a) a proposta do governo “desestrutura a carreira” por estabelecer hierarquias entre professores, com diferentes classes conforme a qualificação profissional (com doutorado vs. sem, por exemplo), e criar regras para a ascensão à classe de professor titular que envolvem um processo seletivo e limitam a porcentagem dos professores que podem chegar a essa esfera mais alta. Citando a ANDES, “todos os professores exercem a mesma atividade que é o desenvolvimento e aperfeiçoamento do ensino, da pesquisa e da extensão de forma indissociável”. Logo, “todo o professor pode chegar ao topo e que o desenvolvimento na carreira ocorra pela incidência equilibrada entre a experiência acadêmica, a formação continuada e a avaliação do trabalho docente no contexto da avaliação institucional, respeitada a autonomia universitária para definição de critérios.”
(b) condicionar a progressão na carreira a uma avaliação periódica a ser realizada pelo MEC, o que de acordo com a ANDES é um absurdo, pois faz com que “a autonomia universitária é profundamente atacada quando se remete a definição de critérios avaliativos de tantos e tão distintos percursos acadêmicos, extremamente variáveis entre áreas do conhecimento e localizações geográficas , para regulamentações gerais que serão baixadas de fora para dentro pelo governo central”, ao instituir uma “avaliação individual de cunho produtivista, objetivada em um escore de pontos, característica do paradigma gerencial.”
são palavras bonitas, com certeza. Mas se você foi convencido por elas, das duas uma: ou você nunca esteve dentro de uma universidade pública, ou você está dentro dela há tempo demais e deixou de perceber o quão fora da realidade é o seu funcionamento.
pra quem por acaso esteja no primeiro grupo, deixem eu tentar traçar um breve panorama do que consiste o trabalho de um professor universitário. Professores universitários não batem ponto, tem poucos horários fixos afora os de aula (atualmente fixados em 8 horas por semana pela Lei de Diretrizes e Bases, ainda que isso varie), e têm uma liberdade considerável pra escolherem ou inventarem projetos, temas de pesquisa e outras atividades às quais queiram dedicar seu tempo de trabalho. E é ótimo que essa liberdade exista, porque no fundo ela é o que permite a universidade possa existir enquanto espaço criativo de geração de ideias.
contanto, é claro, que as pessoas usem esse tempo e essa liberdade pra alguma coisa de útil.
no entanto, quem já frequentou uma universidade pública sabe que as tais 40 horas dependem pura e exclusivamente da boa vontade do professor. Porque na prática, afora o tempo em que você tem que estar em aula, não existe ninguém pra cobrar o que você faz no resto do tempo. E na ausência de controle externo nenhum, a verdade é que se eu, ou qualquer outro, quisesse dar as minhas duas manhãs de aula por semana e passar as outras 32 horas coçando o saco, surfando ou jogando bola de gude, nada nem ninguém me impediria. Aliás, talvez eu tivesse menos incomodação do que ao tentar trabalhar, por não estar competindo pelos recursos de ninguém.
um segundo fato inquestionável é que ninguém faz a menor ideia do que eu faço ou não em sala de aula: nem o MEC, nem a reitoria, nem o meu Instituto. O que significa que eu sou plenamente livre pra dar aula do jeito que quiser, chegar na hora que quiser, sair na hora que quiser e não prestar contas pra ninguém. E a não ser que eu incomode tanto os estudantes a ponto de gerar algum processo administrativo, o que quer que eu faça em sala de aula não vai fazer a menor diferença na minha vida, porque as avaliações deles sobre mim acabam perdidas em algum formulário que ninguém jamais vai olhar. O que significa que, pra minha carreira, dar uma aula ruim vale mais a pena do que ter o trabalho necessário pra preparar uma boa aula, já que livra tempo pra exercer atividades mais bem recompensadas.
e antes que alguém entenda errado, não quero dizer em absoluto que todo professor universitário seja vagabundo e não faça nada. Muito pelo contrário, minha impressão é que a maioria deles trabalha, cumpre e frequentemente excede de longe as tais 40 horas semanais, e assim corresponde ao que a sociedade esperaria deles. Mas ao mesmo tempo também conheci dezenas de professores, desde a época de aluno, que cumprem o seu mínimo de horas de aula e caem fora da universidade o mais rápido possível, trabalhando uns 20% ou menos daquilo para o qual são pagos. Afora os ocasionais casos escandalosos que não dão aula, não fazem mais nada, sequer aparecem na universidade e ainda assim não são demitidos, porque mandar alguém embora do serviço público é uma tarefa tão hercúlea que às vezes é mais fácil esperar que eles se aposentem.
duvido muito que qualquer pessoa que tenha passado por uma universidade pública não conheça inúmeros exemplos como os citados acima. E apesar de tudo isso, porém o sindicato afirma, estapafurdicamente, que “todos os professores exercem a mesma atividade que é o desenvolvimento e aperfeiçoamento do ensino, da pesquisa e da extensão de forma indissociável.” Uma afirmação risível  que denota claramente que ou (a) o comando nacional de greve nunca colocou os pés numa universidade ou (b) eles são hipócritas de marca maior mentindo descaradamente pra sociedade.
e o fato de haver pessoas que trabalham mais e outras que trabalham menos não significa que a universidade esteja infestada de pessoas mal-intencionadas. Mas é simplesmente uma consequência lógica de como o mundo funciona – pessoas diferentes têm motivações e competências diferentes, e é ingênuo esperar que um conjunto de milhares de pessoas sejam iguais e exerçam qualquer atividade da mesma maneira. E como em qualquer lugar, a única maneira de fazer com que todo mundo trabalhe pelo menos o mínimo que se espera, e preferencialmente o melhor possível, é cobrando de quem não trabalha e recompensando quem o faz.  Como seria mais ou menos natural em qualquer lugar do universo, exceto no sistema público brasileiro.
o que me leva naturalmente ao segundo ponto nevrálgico da posição do sindicato, que é a convicção dogmática de que professores universitários não podem ser avaliados pelo MEC, nem por ninguém de fora da universidade, porque isso feriria a “autonomia universitária”. O que, na versão do sindicato, é o conceito de que (a) a sociedade tem que pagar (e bem) os professores através do Ministério da Educação, porém (b) só os próprios professores são capazes de avaliar a si mesmos em âmbito interno e dizer o que eles mesmos têm que fazer. Ou seja, ganhamos 35 anos de salário mais aposentadoria, e nos sentimos plenamente confortáveis com o fato de não ter que prestar contas pra sociedade em momento nenhum.
contra toda a lógica, assim, a proposta da ANDES é que “todo o professor pode chegar ao topo da carreira”, sem que ninguém de fora tenha controle algum sobre isso. E que a única condição para chegar lá sejam critérios estabelecidos pelos próprios professores, dentro dos próprios departamentos, o que significa basicamente que você será avaliado pelos seus vizinhos de corredor, que por sua vez serão avaliados por você. E nenhum deles terá nada a perder se todo mundo for aprovados, já que é o MEC que vai pagar a conta mesmo. O que na prática significa que a não aprovação de progressão na universidade só ocorre em caso de hecatombe (ou de briga política feia). E que qualquer professor pode tranquilamente sentar a bunda depois de concursado e ver o salário aumentar eternamente sem grandes preocupações. Um pouco como uma empresa em que todo estagiário recebesse ao ser contratado a garantia de virar CEO. E enquanto isso, a sociedade paga a conta, sem a menor possibilidade de cobrar o investimento feito.
(note-se, aliás, que a tal “avaliação” não é sequer uma avaliação de verdade como as que existem no mundo real, que permitiriam botar pra rua alguém que não trabalha, ou ter alguém chegando pra cobrar porque raios os alunos acharam sua aula de ontem uma merda. Só significa que pra que você receba um aumento você vai ter que mostrar que fez alguma coisa ao longo de dois anos, com critérios que sequer estabelecidos estão. Mas mesmo isso parece completamente inconcebível pra quem vive no mundo mágico de Oz).
qualquer pessoa com um mínimo de bom senso que olhasse de fora diria que um sistema desses evidentemente não pode fazer sentido. Que é ridículo que alguém possa ganhar por 40 horas de trabalho e trabalhar 8, e mais ridículo ainda que esse alguém ganhe o mesmo que o outro que trabalha 60. Mas pro movimento sindical docente, que vive nesse mundo mágico em que todos são idênticos, competentes e trabalham o máximo que podem sem cobrança alguma, tratar todo mundo da mesma forma é apenas o estado natural, inevitável e justo das coisas. Algo assim como um socialismo que dispensasse a fase da ditadura do proletariado e pulasse direto pra utopia do mundo perfeito.
e naturalmente qualquer iniciativa em prol de diferenciar essas pessoas e recompensar quem trabalha é imediatamente tachada de “produtivista” e rejeitada como uma tentativa de “dividir a classe”. O que na verdade é exatamente o caso: a ideia toda é dividir quem trabalha e quem não trabalha, ou quem tem mais qualificação e quem tem menos. O estranho é que isso seja tomado como uma coisa ruim.
mas pra quem está dentro do sistema, tais convicções parecem absolutamente normais, e o que mais me apavora é pensar que muitos professores de fato acreditam nelas. Porque essa parece ser a natureza do sistema público brasileiro: um conjunto de categorias que, por falta de controle externo, lentamente absorvem a convicção de terem recebido uma graça divina via concurso que as permite serem sustentadas para o resto da vida sem prestar contas a ninguém. E por falta de alguém de fora pra lhes dar limite, acabam se transformando, cada um deles, na sua versão particular de Oz.
e ainda assim, a mesma classe fica pasma e indignada quando vê a mesma coisa acontecendo no Congresso, no Judiciário ou onde quer que seja, sem conseguir olhar pro próprio umbigo. Afinal, achar que professores podem auto-avaliar idoneamente seus próprios méritos é mais ou menos como achar que deputados podem legislar sobre os próprios salários. E não sei bem se existe algum deputado honesto em Brasília, mas se houver eu acho que devo andar me sentindo mais ou menos como ele se sente, assim como boa parte dos meus colegas que trabalha pela universidade. Me vendo dentro duma instituição à qual eu dedico boa parte do meu tempo, que considero vital pra sociedade e em cuja sobrevivência eu tenho todo o interesse. E assistindo as pessoas que representam a classe perderem o senso de realidade, a ponto de ameaçarem acabar por desmoralizá-la junto à população. Como quase toda instituição pública acaba desmoralizada no Brasil, devido a um insustentável modelo de gestão pública em que ninguém é responsabilizável por coisa alguma.
e o mais engraçado é que em toda greve que presenciei desde que eu era aluno (essa já é a quarta), o sindicato sempre quis me convencer que o real motivo da greve era “salvar a universidade pública” (ou “evitar a privatização da educação”), ainda que desde a primeira já me parecesse óbvio que eles só queriam salvar a si mesmos. Na minha humilde opinião, no entanto, se a ideia é salvar a universidade, o primeiro passo é rejeitar frontalmente uma postura ideológica que protege quem se acomoda, não recompensa quem trabalha e parece querer transformar a universidade federal em mais uma repartição pública (com todo o sentido pejorativo que o termo “repartição pública” infelizmente veio a adquirir no Brasil). E tentar construir algo que se assemelhe um pouquinho mais ao mundo lá fora, longe de Oz, em que as pessoas são responsáveis pelos seus atos, e passíveis de serem avaliadas pelo seu trabalho e criticadas pelas suas falhas. Porque a única maneira digna de pleitear um salário justo é oferecer a contrapartida de poder ser cobrado por quem o paga. Que em última análise não é o MEC, e sim todos nós, contribuintes, que somos quem acabará arcando com a conta.
e era mais ou menos isso, dei a cara pra bater. Mas tenho a impressão de que minha profissão precisa urgentemente de um tapa na cara pra acordar.

segunda-feira, julho 30, 2012

prelúdio para um livro por escrever

em primeiro lugar, não me tome como palavra. Para você que escolhe enfrentar-me, antes de ser palavra eu sou espaço. Uma página em branco, uma maneira nova de preencher o silêncio. Uma voz que não era a sua até há pouco, mas que guarda a promessa de vir a sê-la. Em mim você busca uma espécie de redenção, uma forma de remodelar as paredes que o prendem do lado de fora da página. Uma possibilidade de recontar sua história em um registro distinto, de traduzi-la em uma língua imaginária. E às custas de burilar, remoer e revirar do avesso a sua narrativa pessoal, você em seu íntimo guarda a esperança de que a realidade se faça mais clara. De que uma experiência confusa em uma língua carregada e incompreensível se transforme em uma lógica translúcida ao ser fixada na página, como se passada por um google tradutor ao contrário. E é nessa esperança que você me abraçará como projeto, mergulhará de cabeça em mim, abrirá picada em minhas páginas e se baterá contra o idioma atrás da transcendência que se oferece do outro lado. Do momento em que a palavra se fará justa e clara, redimindo a confusão da realidade, e em que você por fim emergirá na outra ponta do túnel.
mas ao mergulhar em mim, você não percebe, ou finge não perceber, que isso é apenas uma hipótese. Que a saída do túnel é apenas uma suposição, uma certeza não justificada de que a confusão de sua cabeça pode ser traduzida em uma língua que a torne mais simples. Mas tenha em mente que é igualmente possível que essa língua não exista e nem possa existir. Que o seu mundo interior só seja apreensível em pequenos pedaços incongruentes, e que novas línguas e novas histórias não lhe permitirão ver as coisas de uma forma mais clara, mas apenas de uma forma diferente. E se isso for verdade, ao invés da clareza, tudo o que você encontrará dentro de mim será ruído. Um ruído que nesse caso não será uma distração, mas sim a essência. E essa polifonia do caralho que lhe ensurdece os ouvidos será a melhor experiência que você poderá ter de uma realidade intraduzível.
mas novamente, lembre que isso também é só uma hipótese.

quarta-feira, junho 27, 2012

dias da fila redonda

como o outro, espero eu também o momento de nascer. Procurando no meio da selvageria desse falso inverno um fio-guia, quaisquer três migalhas de pão que por acaso formem uma linha. Não pra indicar o caminho de volta, mas simplesmente pra sugerir alguma trilha a seguir no meio dessas tantas abertas a facão, pela minha vontade ou contra ela, no desmatamento geral dos últimos anos. E consciente de que o desejo de seguir por todas elas é o único sincero, mesmo que impossível, já sou capaz de decidir que nada se decide. E exponho o corpo ao sacrifício com uma volúpia incomum, sem saber se isso é abrir picada numa floresta que há pouco parecia sem saída ou buscar alguém pra replantar a porra toda. Mas sabendo lá no fundo que a única opinião possível é encontrar quem seja mato e picada, e possa fazer com que a trilha dure.
e como em todos os tempos que realmente importaram na vida, o que paira suprema sobre todo o resto é a sensação de espera. A expectativa enorme, corporal, de que algo vital vá acontecer a qualquer momento, e que às custas de sua própria intensidade fará com que algo acabe de fato acontecendo. Mas enquanto esse algo não vem eu também espero na fila redonda, aguardando o desfecho inevitável: o momento em que se nasce, em que o canal do parto chega ao fim, em que se enxerga a luz branca da vida de verdade que começará do outro lado. Com a mesma expectativa adolescente de sempre. E com uma pontinha de desconfiança, essa nova, de que talvez o outro lado pouco importe, talvez nem exista, e de que não haja vida maior do que esse úmido e lindo túnel de espera.

sábado, junho 16, 2012

pra quem cansar de ser sustentável

uma semana inteira de Rio+20 foi demais pra você? Cansado de ouvir palavras bonitas sobre sustentabilidade, emissões de carbono e aviões feitos de garrafas PET (várias delas escritas em folhetos em que você vai botar no lixo em cinco minutos, ou então em letreiros luminosos que precisam de umas três Belo Montes pra acenderem)? A fim de curar a ressaca do fim de conferência com um pouco de neurose e insensatez?
se esse for o caso, meu curta-metragem ultraminimalista A Porta do Quarto faz sua estreia carioca no De Modo Geral, evento multimídia criado pelo amigo Paulo Scott e já na sua décima-primeira edição. Afora minha pequena história de vida contada sem movimentos de câmera (em redondos 7'44"), literatura, teatro, performance e conversa jogada fora entre gente legal.
o evento rola na Casa da Gávea na próxima sexta, dia 22 de junho, às 20h30 da noite. Parece que o filme passa por volta das 21h30, mas eu não confiaria lá muito na previsão. Mas não se preocupem, que o resto da noite também promete. Apareçam.


quinta-feira, maio 31, 2012

transbordando Dutra abaixo

e enquanto a vida ruge e eu me afundo em prestações de contas, Correnteza e Escombros será lançado em São Paulo nesse sábado, dia 2 de junho, na Livraria da Vila/Lorena (Alameda Lorena, 1731). Estarei lá para autografar, trocar uma ideia e tomar umas com vocês. Apareçam.

quarta-feira, maio 02, 2012

próximo capítulo, no qual o que está delineado no post abaixo toma uma forma concreta

não por acaso, meu próximo livro (ou a minha próxima tentativa de um, porque nada me garante que tenha qualquer chance de dar certo) é sobre o meu Rio de Janeiro cheio de monstros, sobre a minha cidade ideal do passado, e sobre o lugar real à minha frente que não é nenhum dos dois. Claro que misturado a isso tem uma Zona Sul submersa, favelas ocupadas por arranha-céus, captadores de atividade cerebral, síndromes de adição ao neurofeedback e outras coisas que só costumam existir no pós-apocalíptico ano de 2040, porque ninguém é de ferro pra falar a verdade o tempo todo. E ainda que por ora isso ainda seja apenas um devaneio inconsequente, dizê-lo aqui não deixa de ser uma tênue forma de compromisso. Os pacientes que me aguardem.

tabuleiro

é fascinante como as pessoas projetam suas crises sobre o território. Posso dizer que falo com alguma propriedade: quando se mora longe de onde se nasceu (mesmo que nem tanto), uma porcentagem significativa dos seus diálogos acaba recaindo sobre falar mal de um dos dois lugares. E isso vale tanto pros exilados como com os que nunca saíram (e que a essa altura da vida também se sentem um pouco exilados por isso).
e eu nunca deixo de me surpreender com o fato de que as reclamações das pessoas sobre os lugares onde moram são sempre muito diferentes das minhas. E às vezes são tão diversas a ponto de parecer fisicamente impossível que elas de fato se refiram ao mesmo lugar. Ou que o lugar seja realmente culpado por elas.
até porque o espaço, como bem se sabe, é uma dimensão em decadência. Num mundo que parece cada vez mais bem descrito pela teoria dos grafos, o território é um senhor decrépito, relativo e destituído de poder. E ainda assim ele segue levando uma carga enorme de culpa: tudo o que é pouco ambicioso no sul é culpa do provincianismo de Porto Alegre, tudo o que não funciona no trópico é culpa da malandragem do Rio de Janeiro, e seguir com mais exemplos seria chover no molhado.
e esse ressentimento direcionado ao território talvez seja um não dar-se conta - ou uma negação ativa - de que todo deslocamento ocorre não só no espaço mas no tempo. Por essa contingência física, cada lugar também corresponde a uma volta da vida, e a um pedaço particular de quem se desloca. E atribuir nossa insatisfação à geografia costuma ser só uma maneira de projetar nossas próprias frustrações num espaço em que elas pareçam deixar de ser só nossas. O que nos faz sofrer um pouco menos sozinhos, no fim das contas. O que já é uma grande coisa.
mas no fundo eu confesso que o espaço já não me engana como antigamente. Sempre vai haver uma cidade pra culpar pelas nossas agruras (e o Rio sabe como ele levou porrada de mim nos últimos anos). Mas por mais que ele me mostre o pôr-do-sol do Arpoador ou o trânsito na Linha Vermelha, ele já não me convence do seu poder. E cada vez mais eu sinto que minhas tristezas e alegrias no fundo são só minhas. E que o máximo que a cidade me oferece é essa tela colorida, esse espelho distorcido que reflete pedaços de mim mesmo.
e assim eu sigo em frente, cada vez mais convencido que qualquer lugar pra onde se vá, mais do que uma imposição geográfica, será apenas mais uma nova bola lançada na roleta, um pequeno reiniciar da vida, um terreno um pouco menos construído do que o anterior. E que o espaço, com toda sua pompa de cartão-postal, é apenas o tabuleiro dos verdadeiros donos do jogo: o tempo, o acaso e o desejo, que jogam sobre ele seus dados, fazendo ressurgir em todo deslocamento a esperança de um lance diferente.

quarta-feira, abril 25, 2012

Dylan, ou a inevitabilidade do presente

um show de Bob Dylan é algo assim como um genocídio musical. Sem maiores constrangimentos, a banda pega um repertório genial, coloca-o contra a parede e metralha-o sem dó com suas  guitarras elétricas. O que seria apenas um lugar comum, não fosse o velho fanho que assassina as canções o seu legítimo autor.
Dylan é automutilação.
e poderíamos argumentar que essa metamorfose constante é apenas uma forma de tentar soar original num mundo tão habituado a ouvir covers de si mesmos (sim, estamos falando com você, Paul McCartney). Mas a desconstrução é radical demais pra ser apenas isso . A resignação de “It’s All Over Now, Baby Blue” nessa levada alegre? O lamento folk de “Blind Willie McTell” metamorfoseado em country? A contemplação literária de “Desolation Row” estripada de um par de estrofes pra virar rock? A maneira com que Dylan faz tábua rasa de canções outrora perfeitas, mantendo apenas a letra (e olhe lá) pra tocar qualquer outra coisa por cima lembra Coltrane transformando standards em bebops enlouquecidos já sem nada a ver com os originais.
Dylan é jazz.
mas enquanto no jazz a desconstrução era a regra, na canção popular deveria valer a “perfeita harmonia entre letra e música”. Mas se a letra é a mesma e a música é algo completamente distinto, que harmonia pode restar? Será possível que o que “Simple Twist of Fate” dizia no original, a balada tristonha de um recém divorciado, possa representar a mesma coisa na voz desse velho sorridente, cujas dancinhas no palco dão o ar de um crooner diabólico que arde de prazer em soar como jukebox em bar de beira de estrada? Ou ele já teria se tornado apenas um pastiche inexplicável de si mesmo?
Dylan é farsa.
ou então ele simplesmente não está nem aí pro seu passado. Já esqueceu porque escreveu essas canções. Não tem mais dentro de si o que queria dizer na época (e quem tem, no fim das contas?). E simplesmente trouxe o repertório que tem pra tocar, da maneira que lhe faz sentido tocá-lo hoje. A questão é simples: o que quer que tenha acontecido a essa altura são apenas fragmentos emoldurados, memórias amareladas, histórias costuradas em canções. E fingir que o passado ainda desperta a mesma emoção é fútil: ele é apenas um punhado de imagens compartilhadas, que uma vez mais podem servir de base pra fazer algo novo.
Dylan é o presente.
e a presença dele ali no palco, sorridente, no fim das contas é a mensagem que resta. O constante morrer de suas canções nas suas próprias mãos é a prova de que o passado se foi. De que ter sido uma das figuras mais influentes do século XX pouco importa. De que a realidade nesse momento é um homem de 70 anos, surpreendentemente vivo, tocando para a plateia de uma cidade provinciana no sul do Brasil em que quase ninguém entende o que está acontecendo. Não por acaso, a música mais fiel à roupagem original é “Ballad of a Thin Man” (you know something is happening/but you don’t know what it is), apesar dos ecos insanos na voz. E ainda assim a plateia pulará quando, traindo tudo o que fez até então, ele tocar uma versão inesperadamente pop de “Like a Rolling Stone” e deixar o público cantar o refrão.
Dylan é Judas.
mas dessa vez, ao contrário de 1966, o público já deixou de acusá-lo. A essa altura o velho caipira poderia fazer o que bem entendesse no palco e ser ovacionado, dado o peso de sua celebridade e a alienação geral do público cada vez mais genérico dos grandes shows. Mas mesmo que ninguém mais repare, Dylan teima em ser Judas, para uma audiência que já não se importa com o que ele toque, pois já não tem olhos para o homem, apenas para a lenda. Mas ele ainda enxerga a sua plateia, e sabe que naquele momento ela é a única realidade que existe. E talvez por isso ele a presenteie com um puta show, por mais que ninguém ali entenda mais nada do que ele quer dizer.
eu também não, aliás.

sábado, abril 21, 2012

correnteza no ar

ok, tô chegando atrasado pra anunciar o que já foi divulgado via facebook, twitter e até no jornal. Mas é que o blog, esse meio de comunicação já meio retrô, já passou a ter esse tempo meio reflexivo. Correnteza e Escombros já está online na íntegra desde o início da semana em http://www.olavoamaral.com.br, com toda uma interface que permite ao texto receber comentários, links, imagens ou vídeos, como se fossem alfinetinhos virtuais num mapa.
como o site de certa forma fala por si, muito pouco me resta pra dizer por aqui. Mas queria elaborar só um pouquinho mais sobre as razões que me levaram a colocar o livro online (o que, pro meu estranhamento, ainda causa um certo espanto em pleno 2012).
(a) o livro teve financiamento público, logo deve ser disponibilizado ao público. O que deveria ser um conceito óbvio, mas por incrível que pareça continua não sendo. Sempre me deixou abismado o fato de que longa-metragens brasileiros custam milhões de reais ao contribuinte, por meio de financiamento direto ou renúncia fiscal, e depois passam em duas ou três salas em São Paulo e Rio de Janeiro por uma ou duas semanas, sequer saem em DVD e ficam inacessíveis a 99% do público que pagou pelo filme. E o pior de tudo é que todo mundo parece achar isso normal. Ainda que seja mais ou menos como pagar um pedreiro pra construir uma casa e depois descobrir que a casa pertence ao pedreiro.
(b) tenho a nítida convicção que o que se ganha em termos de divulgação com uma ação dessas é infinitamente mais do que o eventual livro que se deixa de vender porque a pessoa leu online. Acho que poucas pessoas ainda deixariam de comprar um livro a 25 reais porque ele pode ser lido no computador. E o universo de pessoas que podem ter acesso ao seu trabalho se ele estiver online aumenta exponencialmente. É claro que esse momento não vai durar pra sempre - uma vez que o ebook se estabelecer como formato padrão, o que não deve demorar, essa lógica vai pras cucuias (e talvez o mercado editorial também). Mas por ora, se o único cara que ganha dinheiro de verdade vendendo livros nesse país pirateia os próprios livros, quem sou eu pra dizer que é mau negócio?
(c) tendo escrito o livro, eu queria me divertir um pouco. E se divertir, pra um escritor, significa em última análise ver a obra evoluir independentemente de si mesmo. Desde que entrei no Facebook, o que mais me fascinou no conceito sempre foi o fato de que o meu perfil por lá cresceu completamente alheio à minha vontade. Nunca postei uma foto minha por lá, mas o meu perfil já tem 122 por conta dos tags alheios. Afora o fato de que pessoas preencheram por mim a cidade onde eu vivo, o colégio e faculdade onde estudei, o lugar onde eu trabalho, os membros da minha família, e inclusive alguns dos meus gostos (eu só tive o trabalho de aprovar). Então achei que seria legal se o meu livro crescesse dessa forma também. Me surpreendendo todos os dias sem me dar trabalho, como um filho criança que eu não precisasse sustentar. Enquanto eu faço algo um pouco mais útil, como deitar na rede e olhar pro mundo. E pra ele.
e por ora era isso. Ainda que eu espero que venha a descobrir muitas outras boas razões pra justificar a empreitada. Aguardo a ajuda de vocês pra isso.

segunda-feira, abril 16, 2012

bem-vindos à correnteza

e agora de fato, Correnteza e Escombros faz sua estreia mundial no Rio de Janeiro amanhã, dia 17/04, às 19h, na Livraria da Travessa de Ipanema (R. Visconde de Pirajá, 572).
os porto-alegrenses ainda demorarão um pouquinho mais pra ver o livro, mais especificamente até o dia 21/04 (sábado), também às 19h, na Casa de Teatro de Porto Alegre (R. Garibaldi, 853), dentro da programação da FestiPoa Literária.
ainda na FestiPoa, também estarei num debate com Henrique Schneider e mediação de Leila Teixeira na Palavraria no dia 22/04 (domingo) às 14h30 na Palavraria (R. Vasco da Gama, 165). Naturalmente, teremos exemplares à venda lá também para atender o público matutino.
um terceiro lançamento em São Paulo deve rolar em maio, em data a ser confirmada em breve.
pros geograficamente impossibilitados de comparecer, o livro deve estar à venda a partir dessa semana (em versões física e ebook) no site da Editora 7Letras. Além disso, o conteúdo do livro estará disponível gratuitamente online, com uma interface que permitirá que o mesmo receba comentários, links, imagens e vídeos sobre o texto. Isso serve pra garantir que um livro feito com dinheiro público esteja disponível para o público (o que infelizmente ainda é mais regra do que exceção). E, se tudo der certo, deve permitir que o livro ganhe vida própria e siga em construção a partir dos seus leitores. O que, de certa forma, é tudo o que um autor pode desejar.
e agora é hora de ficar quieto, e deixar que ele comece a falar por si. A palavra está com vocês. Façam-se presentes.

terça-feira, abril 10, 2012

em uma semana

e essa é a quase capa, rejeitada na última semana por um surto de indecisão maluca, e por um grau de ensolaramento um pouco maior do que o do livro. Foto minha de nos escombros do Hospital do Fundão, barco feito por algum artesão de Ganchos, cortesia da tia Gigi.

terça-feira, abril 03, 2012

em duas semanas

mais uma capa alternativa, cortesia do Flávio Vaz Brasil, cujo surgimento foi responsável por toda uma linda, saudável e desesperadora crise de capas há duas semanas atrás.

sexta-feira, março 30, 2012

correnteza na nascente

se a ideia toda da internet de fato gira em torno de "compartilhar", compartilho com todos vocês a minha melhor notícia dos últimos tempos. Meu livro foi pra gráfica hoje.
e pra tentar fazer jus a todo esse processo algo insano e obsessivo das últimas semanas, compartilharei aqui não uma, mas pelo menos cinco ou seis ideias de capa que nasceram e morreram ao longo dos últimos dias. Simplesmente por apego a tanta coisa legal que acabou não indo pra gráfica.
a primeira candidata a capa a bater na trave é essa abaixo. Foto minha, origamis de Vanessa Maurente, escombros do Hospital Universitário do Fundão. E juro que de onde essa aí veio tem muitas outras ainda por vir.


domingo, março 18, 2012

hora de abrir a porta



























parece mentira, mas meu curta-metragem "A Porta do Quarto", originalmente filmado em 2007, finalmente estreia nessa sexta (23/03) às 20h30 no Santander Cultural, depois de um longo parto de mais de quatro anos de idas e vindas (o que dá mais de um ano pra cada dois minutos de filme). Mas acho que valeu a espera.
pros que quiserem compartilhar o momento, incluindo equipe, apoiadores, amigos e público em geral, estaremos por lá, levando nossa proposta ousada e mimimalista de filmar uma pequena história de vida em um único enquadramento, na sala de casa, com dezenas de móveis emprestados e um orçamento de produção de uns duzentos reais (mais da metade dos quais gasto em pizza pra equipe). E de chamar isso de cinema de verdade. Pela simples razão de que de fato é.
pra quem por acaso não possa comparecer, resta esperar o festival mais próximo. Ou o dia em que o filme desaguar na rede, como tudo o mais nos dias de hoje. Mas por ora, ainda é melhor aparecer na sexta pra ver o primeiro choro do bebê ao vivo. E pra depois comemorar junto com a gente mais um parto bem sucedido entre tantos nessa vida.

quarta-feira, fevereiro 29, 2012

a vida que começa hoje


(fotocomposição não intencional)

terça-feira, fevereiro 07, 2012

mônade

essa noite tive um pesadelo horrível: sonhei que estava preso em meu próprio corpo. Que era refém do movimento de minhas pernas, e não me era permitido ver nada além do que meus olhos enxergavam. E que era forçado a conviver o tempo todo com meus pensamentos, como se estivesse encarcerado em minha cabeça e não tivesse opção senão estar ali.
então acordei assustado e me joguei na água.

domingo, janeiro 29, 2012

Captura de tela 2012-01-29 às 14.43.20

trovoou trusz, dava vento, fez-se correnteza.

segunda-feira, janeiro 23, 2012

enquanto os tártaros não vêm

você espera. Monta seus quebra-cabeças e ensaia suas peças imaginárias e veste suas bonecas e monta seus castelos indestrutíveis. Brinca de esconder e chuta bolas divididas como se a sua vida dependesse disso. Até o dia em que começa a parecer óbvio e evidente que ela não depende. Que aquilo que antes parecia tão importante é apenas a espera de uma outra coisa, um ritual de preparação pra algo que aguarda logo adiante. Uma conflagração que vai dominando aos poucos os seus pensamentos e os dos seus amigos e não tarda por acontecer, despedaçando a ordem inocente do que era antes.
e então você chega na idade adulta, e descobre toda uma gama de brinquedos novos, que envolvem pessoas ao invés de bonecas, poderes reais e não imaginários, capacidades reais de seduzir, recompensar, machucar. E brinca com eles por um bom tempo como se a sua vida dependesse disso. Até que em algum momento isso tudo também começa a parecer insuficiente como da primeira vez. Como se fosse apenas a espera de uma outra coisa, um ensaio interminável para algo que você não consegue precisar o que seja, mas que permeia o seu tempo morto, os seus sonhos, os seus primeiros instantes depois de acordar, antes que o mundo tenha tempo de disfarçar-se.
só que dessa vez ninguém mais à sua volta parece notar, e seus amigos continuam andando de balanço e jogando verdade e consequência feito pré-adolescentes, como se nada estivesse por acontecer. E encoberta pela conspiração da ordem vigente, a conflagração que você espera não chega, mesmo que você a intua cada vez mais nítida cada vez que acorda.
até o dia em que ela vem, e então já é tarde demais pra fazer qualquer coisa a respeito.

segunda-feira, janeiro 09, 2012

porto alegre, dois mil e doze

a cidade num domingo de verão é toda estase, asfalto quente. Prédios feios e concreto cinza, vivos só no verde desconexo que infiltra a laje como se fosse uma ruína antiga. E é: porto alegre é hoje todos os mundos que foram antes e que se recusam a sumir, que eu encontro aqui pelos cantos sem procurar. Quase como um reflexo de mim mesmo, com minhas lajes infiltradas e goteiras, fazendo água também. Como de hábito, sinto que mudei mais que o mundo ao redor, que minhas goteiras são mais vivas do que as das ruas nesse tempo de seca; rápido a laje começa a parecer estéril, tédio, modorra ensolarada. E só devagar, à medida que a efervescência do contato passa, é que eu me lembro do que eu costumava encontrar nesse lugar. Que nunca foi mesmo muito mais do que rés-do-chão, terra arrasada, tabula rasa. Um lugar seguro pra pisar e ser eu mesmo risco, meu próprio desenho em hidrocor. Um sólido necessário, pra que sobre ele eu seja líquido, correnteza, desejo, escombros.

terça-feira, janeiro 03, 2012

relatividade













há duas maneiras de relativizar as coisas.
a primeira é se dar conta de que tudo depende da maneira com que você enxerga o mundo. Que dependendo da forma com que se olha, a mesma garrafa pode não só estar meio cheia ou meio vazia, mas também pode conter uma mensagem secreta ou um gênio da lâmpada (contanto que olhada com desejo suficiente). Que um mesmo fato representa infinitas histórias possíveis, e que com um pouco de criatividade você terá pelo menos um leque razoável de versões na mão. E por mera estatística, nas próximas jogadas da vida, é provável que você tenha alguma carta pra baixar.
e a segunda é se dar conta de que nada depende da maneira com que você enxerga o mundo. Por que não importa o que aconteça, o que você faça, pense ou escolha, algumas coisas vão continuar acontecendo exatamente do mesmo modo. A tarde vai cair do mesmo jeito, escorregando devagar no escuro na hora prevista, enquanto os rumores aumentam ao redor de quem a olha de um canto quieto o suficiente (pois as cigarras não fazem idéia de como você enxerga o mundo). E no fim das contas as cartas que você tem na mão talvez nem importem tanto, porque algumas cartas sempre estarão no monte pra serem compradas. Como essa de ficar em silêncio e olhar o mundo.
que as versões da história continuem mudando, e que os fins de tarde continuem iguais. Feliz ano novo.