domingo, abril 12, 2015

tratado sobre o movimento dos corpos

quando fiquei sabendo que meu avô tinha morrido eu saí às pressas da casa de um amigo no Bom Fim. A clínica onde ele passara o último ano de vida, ao longo do qual já vinha sumindo aos poucos, ficava uns dez quarteirões ladeira acima, perto da casa dos meus pais. Mas quando saí pra rua achei que tinha lágrimas demais no rosto pra conseguir pegar um táxi sem ter que dar explicações ao motorista. E preferindo estar sozinho, por uns instantes que fosse, resolvi subir a Ramiro Barcelos a pé.

esse texto é sobre o movimento dos corpos. Mas também é sobre perdas. Assim como um conto que eu havia escrito quatro anos antes, sobre uma tribo na Amazônia que não conhecia a palavra “ir”, e descrevia todos os movimentos como trajetórias circulares que voltavam a um mesmo ponto. Foi um presente de aniversário pra minha ex-mulher, que tinha ido embora pouco mais de um ano antes. Era como eu via o mundo e as pessoas: um conjunto de percursos indissociáveis, que inevitavelmente se encontrariam de volta. Mesmo que levassem mais do que uma vida para fazê-lo.
nessa época eu tinha trinta e dois anos e quatro avós vivos.
nove meses depois disso, minha ex-mulher engravidou de outra pessoa. Foi a concretização do que até então era a pior perda da minha vida. Lembro de ter sentido como se alguém tivesse morrido – o que de certa forma era verdade, exceto que quem morria era uma versão de mim. Como nunca tinha acontecido na minha vida, praticamente não dormi naquela noite. E às sete da manhã, já sem saber o que fazer, eu levantei da cama e saí pra correr.
corri os cinco ou seis quilômetros da casa dos meus pais até a beira do rio Guaíba. Sem nenhum motivo exceto o de fazer algo, qualquer coisa que fosse, pra responder a algo que não tinha resposta possível. Na ausência de palavras que não doessem, me restava o movimento do corpo como forma de cortar à força um fluxo interno que corria atrás da própria cauda.
pra muita gente ao redor meu sofrimento parecia exagerado – faziam quase dois anos que eu tinha me separado, afinal. Mas minha resposta a quem estranhasse sempre passava pelo meus quatro avós vivos. Pelo privilégio estatisticamente improvável de ter chegado à idade adulta quase sem perdas. E de nunca ter precisado de verdade da palavra “ir”.
hoje eu não posso mais reclamar esse privilégio. E isso me dá uma estranha autoridade pra escrever em primeira pessoa, sem precisar recorrer a tribos indígenas inexistentes.
mas voltando ao dia em que meu avô morreu eu subia a Ramiro Barcelos a passo rápido, pra tentar chegar na clínica. E em algum momento, ainda que eu estivesse coberto de lágrimas, eu me dei conta que caminhar me fazia bem. Que se pudesse optar, eu escolheria que aquela ladeira se estendesse pra sempre. Por que estar caminhando era, de alguma forma, uma resposta. E isso me remeteu àquela manhã de mais de três anos antes. Em que sem vocabulário pra aceitar o que se passava, eu tinha desistido das palavras e encarado o mundo com as armas do inimigo.
porque se a vida vai em frente, sem lógica ou sentido, talvez a única resposta possível seja aceitar as regras e fazer o mesmo. Deixar as palavras pra trás e passar a ser corpo e cansaço, câimbra e dor no joelho. Abandonando a imortalidade das ideias pra assumir justamente o que nos faz frágil, esse pedaço de carne que caminha sem nexo em direção ao cadafalso. E tentar assim enfrentar o que não cabe no vocabulário.
no dia que precedeu a morte do meu avô, eu fui padrinho de casamento do meu irmão. Falando aos noivos, eu pedi que eles não perdessem o espanto e o deslumbre com aquela transição, com o mistério da vida deixando de ser uma coisa para passar a ser outra. Ao dizer isso com a voz embargada eu sabia que falava também sobre o meu próprio casamento, sobre o fato da minha ex-mulher estar grávida pela segunda vez. E sem saber, eu também falava da morte do meu avô no dia seguinte. Em casamentos ou velórios, o mundo é sempre essa mesma coisa inexplicável que segue em frente.
quando os Yualapeng abandonaram sua terra natal para fugir do extermínio, eles descreveram sua partida como “uok mamat yuleyule pahl”, ou “volta grande para enganar os fantasmas”. Meu coração estará sempre com eles enquanto os imagino guardando as armas, juntando os víveres, queimando as casas que restam na aldeia. Mas como eles, eu também aprendi que se precisa partir. Mesmo quando não vê sentido na partida, ou quando não se tem palavras para descrevê-la. 
dois anos antes do meu avô morrer, eu escrevi outro conto de presente pra alguém. Era sobre um professor universitário que, morrendo por uma patologia da laringe causada pelo excesso de palavras, resolve viver em uma tribo da Sibéria, conhecida por possuir a língua mais lacônica do mundo. A história fala sobre o silêncio, sobre o movimento e sobre a companheira que o acompanha na viagem. E o fato do protagonista morrer ao final dela não chega a apagar o que ele encontra de curativo nessas três descobertas.
nada nesse texto fala sobre meu avô: pelo contrário, ele é um obituário estranho, que tem a mim mesmo como protagonista e meus personagens como coadjuvantes. Àqueles que me acusarem de egocentrismo, responderei que é bem mais difícil ter de lidar com as perdas assim. Mas que minha solidão ao encarar os meus mortos é o que me dá fortaleza pra lidar com os vivos. Junto com o silêncio, com o movimento, e com aqueles que caminham do meu lado.
por um bom tempo, o passatempo preferido do filho da minha ex-mulher foi subir degraus pra descê-los de novo, sem motivo aparente na trajetória. Talvez ele já intua que é preciso caminhar, e esteja mais preparado do que eu pra lidar com os buracos do percurso. Mas é provável que, quando ele precisar fazê-lo, as palavras dele se mostrem tão insuficientes quanto as minhas. Ainda assim, eu espero estar por aqui pra que a gente possa trocá-las um com o outro. E mais do que isso, pra que a gente possa dar as mãos enquanto caminha adiante.

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